Minha Vida Comigo
9.24.2004
 
Minha Vida Comigo Do começo até o Cap. 04

Todo mundo quer escrever uma autobiografia, nem que seja a própria. Atire a primeira página amassada quem nunca tiver tentado. Como costumo dizer, escrever uma autobiografia é a coisa mais fácil do mundo; difícil é encontrar quem leia.

O primeiro problema intrínseco da autobiografia é a compulsão que todos temos para mentir e fantasiar nossas lendas pessoais. Quando você senta e começa de fato a escrever sua história, subitamente as tias feias e ranzinzas viram princesas austríacas, sua mãe sempre foi amorosa e gentil e seu pai, o homem mais honesto do mundo. Parecem aqueles testes de vidas passadas onde todos fomos imperadores, reis, rainhas e sacerdotes. Que, aliás, deveriam andar a pé e viver sempre dentro do castelo, já que ninguém foi ferreiro, carregador de estrume, porteiro de ponte levadiça.

Há também o efeito contrário. Você transforma seu irmão num criminoso, o poodle vira pitbull e antes que você chegue ao final do primeiro capítulo já terá cometido suicídio literário. De qualquer forma, não há autobiografia isenta, já que o autor sempre mete o bedelho na vida do biografado.

O segundo problema é a linearidade. Não há pesquisas, mas suponho que a quase totalidade de tentativas de iniciar uma autobiografia comece do nascimento pra trás. Ou se começa com os avós imigrantes chegando de navio, ou com os pais se conhecendo ou o médico fazendo seu parto. Os mais engraçadinhos começam com o encontro do espermatozóide fertilizando o óvulo da mãe. O que me faz lembrar daquela piadinha do espermatozóide cansado de nadar que se vira para o colega ao lado e pergunta se falta muito para chegar aos ovários. E o outro diz que falta muito, sim, pois acabaram de passar pelas amídalas.

Existem muitos outros problemas, barreiras e dificuldades para prosseguir com a tarefa. A idéia de produzir uma obra em vida que um dia será póstuma, dá um caráter pesado ao texto. Buscamos termos eruditos, palavras bonitas e frases de efeito.
Eu mesma fiz uma frase de efeito para incluir na minha história:
-“Minha vida é um livro aberto, com várias páginas que eu mesma arranquei.” Além do texto que falta, ainda tem todos aqueles que foram expulsos a tesouradas dos meus retratos.

É com essas cúmplices mãos que escrevo agora, dando início, enfim, a este romance, Minha Vida Comigo, a primeira autobiografia não-autorizada, já que não tive meu consentimento oficial para publicar as revelações que se seguem. Inauguro assim a primeira página desta obra aberta e, Graças a Deus, inacabada.


O prefácio, que nem sempre é fácil!


Não gosto de prefaciar livros, especialmente os meus. Em geral, quem faz o prefácio é alguém próximo ao autor o que não é o caso. Mas, por falta de tempo hábil e excesso de texto inábil,
não tive outra opção senão fazê-lo. Por isso estamos aqui. Estamos, plural de majestade.
Este, porém, não é um livro comum. É uma obra totalmente diferente das outras obras literárias, como os romances que todo mundo compra e ninguém lê. Este é um livro que ninguém vai comprar, em primeiro lugar. Muito menos ler.
Mas, tudo tem um lado bom e, nesse caso, é o lado de fora. Da capa pra fora, o mundo é realmente lindo. Talvez você esteja se perguntando porque este prefácio é tão azedo. Simples: porque ainda não amadureci a idéia de ser obrigada a escrevê-lo.
Finalizando, quero deixar bem claro que diante do tribunal, negarei tudo o que estiver escrito entre as duas orelhas deste livro. Porque toda biografia é sempre uma ficção. Porque todos os que são citados um dia não estarão mais sobre este planeta. E depois de alguns milênios já não se pode mais ter certeza de nada que tenha ou não de fato acontecido. Viver é uma questão de tempo. Aproveitemos cada instante de nossas vidas, pois, tentando retardar o instante seguinte.
S.Paulo, 24 de março de 2000.
Rosana Hermann

Como tudo comecei.

Viver comigo não tem sido fácil. Meus defeitos são tantos, tão poderosos, tão complexos, que juntando todos eles lado a lado, minha alma viraria um álbum de figurinhas dos pókemons.
Não sou má pessoa, não. Mas não sei cuidar de ninguém direito. Nem de mim, nem de coisa alguma, viva ou morta. Me dê uma samambaia pra regar enquanto você viaja e encontrarás na volta um xaxim encharcado de lágrimas. E se me puseram para vigiar uma múmia no sarcófago, aposto que ela sai de lá antes que eu.
Não ocupo nenhuma posição de destaque nos arredores do apogeu, mas tenho certeza que bastaria eu abandonar a vaga para aparecer uma vara de inimigos disputando meu lugar. Só de ódio, vou me valer da lei da física que garante a impenetrabilidade dos corpos e ocuparei meu espaço nesta vida até o último suspiro; ou até o último brigadeiro, dependendo da sobremesa servida.
Sempre fui mais inteligente do que a média, o que não é nenhuma vantagem porque a média, para mim, é café-com-leite. Mas a lei da compensação fez com que eu não estivesse na lista das dez mais bonitas, nem da cidade, nem da escola, nem da classe, nem de nenhum grupo, inclusive os que só tinham 9 garotas.
Freqüentei escolas por mais de vinte anos, fiz incontáveis cursos, dei aulas de inglês durante mais de uma década, leio e pesquiso há um quarto de século. Mas meu maior orgulho intelectual é ser capaz de manejar o garfo e a faca sem jamais ter cortado os pulsos ou furados os olhos, nem os meus nem os de ninguém.
Como todo mundo, comecei com uma mão na frente e outra atrás. Ocorre que, por ser redatora, as contingências do trabalho me forçaram a usar ambas as mãos no teclado. Sem outra alternativa, tive dois filhos, sou casada e sou feliz.
Muita gente me pergunta como eu cheguei aonde estou hoje. É uma pergunta muito difícil de responder, pois, pelos meus cálculos, desde que comecei a andar, venho desenhando um percurso bastante aleatório sobre o globo terrestre. Já tentei traçar a rota que me trouxe até aqui, neste momento, mas a brincadeira de ligue-os-pontos sobre o planeta não formou nenhuma figura concreta. Assim sendo, não sei que diferença faz onde estou se, a qualquer momento posso sair daqui rumo a alhures.
Por falar nisso, outro dia eu ouvi uma atriz de tv de quarto escalão, explicando a um crítico de quinta categoria porque as pessoas a caluniavam. Juntando letras, ela tentava explicar por telefone, ao vivo, que quase todos a invejavam por ela ter chegado aonde chegou. Fiquei muito intrigada em saber de onde ela estaria ligando. Do Everest, pensei, mas tenho quase certeza que os telefones celulares não pegam lá em cima. Enfim, vamos ao começo. O começo por assim dizer.


É surpreendente pensar que o mundo existe independente de nossa existência. Surpreendente e incompreensível pois para cada um de nós, a morte é o fim do mundo. Morrer é a pior coisa que pode acontecer na vida de alguém. Deve ter sido baseado nisso que criaram toda a produção cultural do terror. Porque se a morte é a pior coisa da vida, pior que a morte só o que vier depois. E assim surgem os vampiros, os mortos-vivos, as almas penadas e todos os políticos eleitos por votos comprados.
Dizem que todo o começo é difícil e é exatamente por isso que é sempre melhor começar pelo meio ou pelo fim. Dizem também que em alguns casos, os fins justificam os meios. Se assim raciocinarmos, então, os meios justificariam os começos e os começos justificariam os fins, tornando a coisa toda cíclica. É exatamente aí que queríamos chegar, o ciclo.
Tudo é cíclico. Tudo. E o que não parece ser, apenas não avançou o suficiente pra chegar ao último estágio, ir adiante e voltar ao primeiro. Até o big bang, a explosão que teria dado origem ao universo, é cíclico. Vamos encolher e explodir e encolher e explodir, exatamente como faz nossa conta bancária quando vai a zero e estoura o limite do banco, para depois depositarmos um dinheirinho e chegarmos ao zero novamente.
Para muita gente, o zero é um mal a ser evitado, mas para a grande maioria dos saldos devedores o zero é uma meta a ser atingida. Exatamente como a mediocridade. Todos nós temos medo de cair na mediocridade, uma vez que julgamos estar acima dela. Ser medíocre é ser mediano, é viver na média. Só de ouvir já me dá arrepios, de tão horrível. Ver-se enquadrado naquelas estatísticas de que o brasileiro médio tem uma tv, uma geladeira e dois rádios. Dá vontade de sair correndo e dar o rádio pro primeiro que a gente encontrar na rua, só pra cair fora da média.
Neste momento, não estamos na estaca zero deste livro, uma vez que ele já foi iniciado. Não estamos no final pois esta obra mal começou. Estamos portanto, naquele lugar horrível, o lugar-nenhum, o limbo, mostrado nos filmes B como um pântano verde cheio de gosma ou de um poço de areia-movediça, de onde a mocinha sempre é salva com a ajuda de um lindo rapaz com uma vara longa, no sentido botânico, colocada no estúdio pelo contra-regras.
É com ajuda desta vara virtual, que vamos nos retirar deste pedaço horrível onde nos encontramos agora, rumo ao próximo capítulo, providencialmente chamado de Capítulo Um.


Capítulo Um.

Eu sou completamente louca. Louca, xarope, tantan, lélé, lesada da cabeça. Talvez a parteira tenha me deixado cair no chão, não sei, não me lembro. O que eu sei, o que todos me disseram durante toda a vida é que normal, não sou.
Meu marido, psiquiatra renomado, inclusive, já me aconselhou a tornar esse fato público, para a segurança de todos. Assim, estou pensando em adicionar uma assinatura padrão aos meus emails com os dizeres "por favor, não me trate como se eu fosse normal".

Tomo café o dia inteiro. Tanto quanto sou capaz. Mas não gosto do travo que o café deixa na boca. É horrível, amargo, tem gosto de corrimão de prostíbulo. -Nossa, agora me deu um nojo, um asco de café... acho que nunca mais vou tomar um café! Por falar nisso, agora há pouco, eu sentei aqui no computador para escrever e encontrei um 'mug' com café frio até a metade. Dei um gole e senti a temperatura, a textura, o sabor e o cheiro da minha auto-estima. Bleargh. Na melhor das hipóteses eu me desprezo. Na pior, eu me suicido.

Mas, felizmente, Deus está em todos os lugares e em todo o momento, o que equivale a dizer que ele é infinito. Deus é o todo, o tudo. Isso sempre dá a maior confusão por causa da nossa natureza baseada na idéia de conter, contido, decorrente da nossa própria finitude, talvez, aparente apenas. Deus, então, nesse momento, se fez presente e me salvou de mais um gole rumo ao fim e me recolocou rumo a Disney. Não, Sidney.

- Que coisa, acabo de perceber que Sidney é um anagrama de Disney...
Deus me fez criar coragem, levantar e levar a xícara para a cozinha. Agora, me diga isso é normal? Fazer, falar sobre isso, é coisa de gente normal? -Não sei se você pode responder a esta pergunta, já que o fato de você estar lendo sobre isso é bastante comprometedor. Tem outro fator, confesso. Eu gosto de não ser normal. Todo mundo é um pouco assim, é normal. Também não é pra chamarem a gente de anormal. Aí já é ofensa.
Eu não fui uma criança normal. Minha primeira infância foi um filme de quinta com elenco de primeira. Nasci no Hospital do Parque da Aeronáutica, no campo de Marte, o que explica muito sobre meu jeito aéreo e marciano de ser. Durante os meus primeiros anos de vida, morei no Paraguai. Aqui, sem interpretações, please, minha infância foi pobre mas foi original.

Morei também durante um ano, dos 3 aos 4, na Florida. Miami ficou eternamente impressa em mim, a admiração por aquelas cores pastel e o estilo decô. Até hoje penso nos flamingos como anjos pernaltas. Mas depois dessas andanças internacionais, fui parar na periferia do Rio de Janeiro, em Santa Cruz. A rua se chamava Cruz Alta e terminava num cemitério. Meu vizinho à esquerda era um marinheiro que contava histórias para todas as crianças da rua, reunidas à noite e ensinava a fazer nós com cordas. Na esquina, do mesmo lado da rua, morava um erudito baiano, seu Mirabeau, um devorador de livros. Nunca conto isso porque parece mentira, mas do outro lado da rua, havia uma senhora chamada Dona Celeste com cabelos brancos em coque, parecendo a Vovó Donalda e, a seu lado, um criador de jibóias. Quem vai acreditar. Mas é verdade.

Também era verdade que a casa onde eu morava era pequena e estúpida. Foi construída por pessoas totalmente idiotas que colocaram todos os ferrolhos, maçanetas, trincos, chaves de cabeça para baixo. Não satisfeitos, colocaram as janelas ao contrário: as venezianas abriam para dentro da casa. Minha mente racional sofria muito. Sofria mais ainda com os vizinhos de cima, os donos da casa,imigrantes portugueses, que tinham uma filha menor que eu, bem pequena, a quem aprendi a odiar. Odiar, mesmo, por razões ecológicas e humanitárias. A pequena criatura tinha por hobby cortar o pescoço de pintinhos de um dia com a tesoura de sua mãe. Os pais, deviam achar lindo ver os pintinhos degolados pois toda semana, no dia da feira, compravam um novo loto de revolucionários franceses amarelinhos para ela. Não vai aqui nenhuma associação étnica, não acredito que a psicopatia por degolar pintos tenha associação a nenhuma origem específica. Doença mental não é privilégio de nenhum país ou povo é privilégio da raça humana, mesmo.

Atrás da minha casa havia uma família onde todos tinham nomes começados com a letra "D". Dilzete, Dilzéia, Damião e outros que não me lembro mais. Só sei que eles davam grandes festas com doces gratuitos no dia de São Cosme e Damião. Tudo era feio na rua, na casa e nos arredores. Feio e pobre. Mas eu era livre. Totalmente livre. Podia andar pela rua de terra, descalça, pisar nas poças, brincar de sentir medo indo até a porta do cemitério. Podia andar longe até as construções abandonadas do Rio Guandú, ou arredores, entrar nas galerias escuras. Podia subir nas árvores, fazer guerra de mamona. O caule do pé de mamona servia de canudo para fazer bolhas de sabão na canequinha. Plantei um árvore no minúsculo jardim da casinha simples onde morávamos, meu pai, minha mãe, minha irmã e eu. Uns vinte anos depois fui ver a árvore.

Estava enorme. Mas na segunda visita, ela não estava mais. Cortaram. Garanto que foi aquele monstro degolador de pintos. Houve um período de transição entre morar na periferia do Rio de Janeiro e a de São Paulo. Embora tivesse 6 para 7 anos eu ainda não havia estado na escola, nunca, desde o nascimento. Minha mãe, que só foi para a escola durante 4 anos de sua vida, não achava muito importante.
Minha irmã, que é cinco anos mais velha, adorava a escola. Queria ser professora e treinava seus talentos comigo. Teria sido uma professora muito enérgica. Ficava muito brava se eu não aprendesse alguma coisa e para me salvar de sua ira, eu aprendia. Quando minha mãe finalmente me matriculou no segundo ano, no Liceu Brasil, em frente ao lago de Vila Galvão, no município de Guarulhos, eu já sabia calcular os mínimos múltiplos comuns e máximos divisores comuns.

Somava frações, lia e escrevia. Era estranho entrar no segundo ano, mas a escola era tão capenga que não criou nenhum problema. Capenga mesmo, porque minha primeira professora, D. Mariza, dava aula para duas turmas ao mesmo tempo, na mesma sala. Metade da classe era composta por alunos da 2a. série primária, onde eu estava, e a outra metade, alunos de 3.série. Eu, já treinada por minha irmã, fazia a lição da minha série rapidamente para poder acompanhar a aula da outra turma. Acabei aprendendo as duas séries em uma só. E fiz minhas próprias descobertas, que ainda não estavam no currículo de nenhum das duas turmas.

Um dia escrevi os números de 1 a 10 , numa tira de papel, à lápis, bem forte. Dobrei-a ao meio E percebi que o 1 e o 10,somavam 11. A mesma coisa com o 2 e o 9, o 3 e o 8, 4 e 7, 5 e 6. Achei curioso este fato, que todos os números de 1 a 10 juntos correspondiam a 5 vezes a soma 11. Portanto, 5x11=55, seria a soma de todos os números de 1 a 10.

Era fácil perceber a fórmula para somar todos os números de uma P.A., progressão aritmética: o primeiro número, mais o último número, multiplicado pela metade da quantidade de elementos, uma tira dobrada. Anos mais tarde fui oficialmente apresentada à fórmula da soma dos elementos de uma P.A, S=(A1+An) x (n/2) Eu não era um gênio ou um monstro, eu brincava de bonecas, jogava pião, desenrolava tatu-bola, fazia experiências químicas. Aprendia tricô com minha avó, bordado com minha tia. Minha tia me obrigava a mostrar o avesso do trabalho para ver se estava bom. E se não estivesse, como nunca estava mesmo, ela me humilhava. Até hoje não sei bordar, mas sou uma exímia tricoteira. Entendo o tricô, compreendo a trama dos pontos. Corto, aumento, diminuo, pinto e bordo no tricô. Sei fazer crochê também. Não sei bem com quem aprendi a fazer crochê, mas acabei vivendo desse trabalho durante muitos períodos da minha vida. Inclusive, no Canadá, onde morei durante dois anos, naquele período essencial, a pré-adolescência.

Nessa época eu tinha como filosofia de vida que a miséria era a mãe da criatividade e coletava as argolinhas de metal de abrir latas de refrigerantes para uní-los todos com uma trama de crochê e produzir bolsas. Fiz muitas bolsas na vida, com patchwork de jeans, com espelhos quebrados finamente bordados sobre o tecido, com miçangas e sementes de colares arrebentados. Era o princípio de Lavoisier intuitivamente aplicado ao artesanato e à falta de grana. Mas o artesanato não foi o destaque do meu desfile nos dois anos em que me senti desfilando na Sapucaí de Toronto. Quando se tem 12 anos, dois anos tem um grande significado ainda mais quando se está num país considerado o melhor em qualidade de vida. Há cinco anos consecutivos o Canadá é considerado pela ONU o melhor país para se viver. Em Toronto, onde morei, os espaços da cidade são quase celulares. Para um determinado número de quarteirões, há um centro comercial, uma biblioteca, um centro de recreação. O traçado das ruas é quadriculado e permite que os ônibus transitem em dois sentidos, norte-sul e leste-oeste Para ir a qualquer lugar você pega um ônibus num sentido, desce no cruzamento e pega outro na transversal. Tudo tem lógica, nexo. Claro, tem o inverno, o vento de 120km por hora, o frio de mais de 30 graus abaixo de zero. O inverno é longo, mas todos os ambientes são aquecidos. É um país de imigrantes, com todas as etnias misturadas. E, estranhamente, todos se respeitam. Tudo é absolutamente limpo. Ninguém joga papel na rua, ninguém arranca as tulipas dos jardins públicos, ninguém cospe no chão. Ninguém em termos, porque a comunidade latina masculina mantém sua tradição obscena e se coça publicamente, entre outras coisas.

Exatamente por causa dessa diferença cultural o dia da minha volta ao Brasil ficou marcado. Eu me lembro de estar com os olhos inchados de tanto chorar, dentro do carro, voltando do aeroporto para a minha antiga casa. Eu olhava a avenida 23 de maio, que liga o aeroporto de Congonhas, que era também o aeroporto para vôos internacionais nos anos 70, ao centro da cidade, e achava tudo horrível, tudo sujo, feio.

Meu coração apertado doía porque aquela sujeira era a minha verdadeira pátria. O Canadá era o estrangeiro. Mas eu não queria ser aquela rua imunda numa cidade cinza e poluída, eu queria ser o jardim de tulipas, as bibliotecas públicas, o povo rico. Mas o ser humano se adapta rapidamente e menos de um mês eu já era a 'Canadense' do colégio Otávio Mendes, na zona norte de São Paulo, e passava cola em todas as provas de inglês do professor Mello. Professor Mello, Vivaldo... Coincidentemente, ontem eu recebi um email do Paulo Eduardo de Oliveira , que estudou comigo, relembrando esses mesmos professores. Ele encontrou meu email na revista Veja, desta semana, sobre corrupção. Eu participei do fórum on-line promovido pela revista e meu email foi um dos tantos selecionados pelo Laurentino Gomes, editor executivo da revista.

O fotógrafo veio, fez a foto, tudo muito rápido. Meu endereço foi publicado e agora, muitos amigos que nem sabem onde estou o que faço, me encontraram novamente. Só quem não foi pra escola é que não tem sua lista de professores inesquecíveis. Em geral, há sempre um, que é o mais marcante, o eleito. A minha eleita foi a D. Mariza, do meu primeiro ano da escola, o segundo ano primário, sobre a qual eu já falei brevemente.
Mas ela merece um capítulo especial. E é por isso, que a ela, eu dedico o capítulo dois. D. Mariza, vamos lá.

Capítulo Dois.

D. Mariza me deu meu primeiro livro. Tinha um gato na capa. Foi o único gato que eu soube desenhar durante trinta anos. Todos os gatos são aquele. Nunca tive outro gato. Sou leonina e sou fiel. A meus amigos, amores, familiares, professores, livros. Ela usava um cabelo alto, desfiado, típico das mulheres dos anos 60. Eu a achava linda e queria ser como ela. É engraçado pensar que só conto com minha memória para montar esse quadro. Teoricamente, eu poderia pesquisar, procurar os arquivos públicos do município de Guarulhos, encontrar o nome completo da professora Mariza, do curso primário do Liceu Brasil, ano de 1965, bairro de Vila Galvão. Traçar seu paradeiro, procurar suas fotos. Encontrar em sépia sobre papel fotográfico. Mas nada seria como minha memória colorida. Não havia vídeo na época. Nenhum de nós tinha uma câmera de filmar em 8mm ou em 16. Essas coisas que moram na cabeça da gente não estão em lugar nenhum. Talvez no arquivo de Deus. Seria uma boa opção para o paraíso. Já pensou? Você encontrar o arquivo da sua vida, com seu filme completo? Em tempo real? Gente, eu ía querer uma ilha de edição pra poder cortar um monte de coisas!!!! A menos, é claro, que cada um tivesse sua senha particular de acesso para ver o copião original... Muitos filmes de ficção já foram produzidos com esse tema porque todo mundo tem seu passado, todo mundo busca suas memórias, e todo mundo gostaria de poder 'rever' de forma 'real' o que ficou virtualmente gravado nas combinações físico-químicas do cérebro. Que riqueza enorme deve estar contida no nosso cérebro, todas as impressões, sentimentos, cheiros da infância.

Pode até ser que tenha um quartinho nos fundos da cabeça com informações de antepassados e vidas anteriores, mas eu não acredito. Acho que o cérebro vem como um winchester vazio quando a gente nasce, com o sistema operacional dos avós, pais e toda a informação genética. Digamos, o nosso hardware. Mas é o software que adicionamos, vivendo a vida, que realmente faz a graça de ser o que somos.

E o melhor é pensar que enquanto há vida, há espaço no disco rígido!!! A dona Mariza, minha primeira professora, ficou arquivada durante muitos anos, numa daquelas pastas da memória RAM, lá na rota 66, ano em que a vi pela última vez. Acontece que o mundo é uma bola, gira, e os ciclos, mesmo quando tem uma periodicidade maior que nossa linha de vida, existem. E de vez em quando, um deles nos envolve com sua linha imaginária. Foi o que aconteceu em 1992. Nessa época, eu estava trabalhando na rádio Jovem Pan FM, escrevendo humor.

O boi na linha ainda era sucesso e por tudo que eu produzi e pelo pouco que ganhava, era a 'queridinha' do Tutinha, o dono da emissora. Foi o Tutinha que me recomendou para o Nilton Travesso, famoso diretor de televisão, que hoje está na Rede Bandeirantes. Nilton quis me conhecer e lá fui eu, como sempre, recomendada por outro alguém. Ele tinha um projeto para um programa de variedades, que eu batizei de Almanaque.

Sempre fui apaixonada por almanaques e hoje, lamento que a Abril cultural tenha registrado este domínio na Web. Eu o queria pra mim. Formatei o programa junto com o Nilton, criei a maioria dos quadros, como a entrevista Video-Vida, que o Nilton adorou. Video-vida era um video em VHS, editado pela produção, com imagens da vida do convidado, de amigos e desafetos, do país e do mundo. Não era uma versão eletrônica do "esta é sua vida" do finado J. Silvestre, quadro, aliás, que eu escrevi para o Jota em 83 na Band. O Video-vida era mostrado num televisor, ao vivo, no cenário do programa e o convidado ía comentando as imagens. O programa tinha quadros, game, música, entrevista com médicos, números musicais, tudo.

Era maravilhoso. A apresentação era do César Filho e da Tânia Rodrigues. Antes do programa estrear, eu queria fazer um piloto de uma reportagem de humor, um jeito diferente de fazer matérias, sem compromisso com nada, nem mesmo com o nexo. Nilton pediu para que eu mesma gravasse a matéria que eu imaginei para que ele compreendesse do que se tratava e escolhesse a pessoa certa para ser a titular. Saí para fazer duas reportagens, uma na Prefeitura de São Paulo, outra no campo de treino do Corinthians. A da Prefeitura ficou hilária. Entrei por portões abertos, sem permissão, com a competente equipe acompanhando tudo. Achei um elevador privativo, tão minúsculo, que tive que abandonar a equipe e subir sozinha. A capacidade máxima era meia pessoa. Brinquei dizendo pra câmera que nem a Erundina, então prefeita, deveria caber alí. Hoje, este tipo de reportagem é comum. Todo mundo faz. Rogério Castilho, meu amigo, faz isso. A Regina, da CNTGAzeta, minha amiga, já confessou que inspirou-se exatamente neste quadro que eu fiz durante dois anos, a Repórter Isso, para fazer suas reportagens de humor. Depois, cada um desenvolveu seu estilo, mas tenho orgulho de ter sido inspiradora dessas coisas. Quando o Nilton viu as matérias, junto com outros profissionais, quase morreram de rir. Decidiram que eu também acumularia a função de repórter de humor, a repórter Isso, homenagem ao repórter Esso.

O quadro entrava no ar duas vezes por semana. Ou três. O lema da equipe era 'jamais voltarás sem uma matéria'. Fizemos coisas absolutamente deliciosas. A situação da emissora era precária, muitas vezes não tínhamos nem dinheiro pra colocar gasolina na kombi. E quando o pneu furava, fazíamos a matéria sobre uma kombi trocando pneu no meio do trânsito. Tudo era lindo. Num desses dias, em que só podíamos ir até a metade da distância que o combustível permitia, estávamos na rua sem saber o que fazer e para onde ir. Decidi que seguiríamos um entregador de pizza para surpreender o solicitante com uma equipe de TV.

Deus participou e quando chegamos com uma câmera no ombro e uma pizza na mão, no apartamento de cinco jovens fisioterapeutas, encontramos muito mais do que uma grande surpresa e muita diversão. Ajudamos, com a reportagem, a divulgar uma para-olimpíada brasileira, que gerou patrocínio e ajuda para todos eles.
Fizemos centenas de reportagens ao longo de 92, desde roubo de carga de queijo, exposições, trânsito até a casa do Maluf. Atravessei a avenida Faria Lima imitando uma galinha, subi no muro de depósitos abandonados, fiz de tudo. No dia da grande manifestação popular dos caras-pintadas, pedindo o impeachment do então presidente da república, Fernando Collor de Mello, no vale do Anhangabaú, fui com a equipe para registrar este momento histórico e, claro, participar dele. Eu estava toda de preto, com detalhes verde-amarelo, muito emocionada, porque era aniversário do meu filho, Gabriel, que fazia 4 anos naquele dia. Gravamos a matéria com toda aquela multidão, entrevistando jovens, adultos, todos imbuídos de uma indignação comum contra o absurdo do governo Collor e já estávamos guardando o equipamento no carro para voltarmos à emissora. Eu estava aflita, porque queria voltar logo para produzir minimante um bolo para meu filho e comprar um presente. Foi quando uma mulher, chegou correndo, agarrou-me pelo braço e disse que tinha um menino de rua totalmente drogado caído no chão ali perto. E que a televisão tinha que ir lá fazer alguma coisa. A equipe ficou indecisa, pois não exatamente nosso tipo de trabalho, mas o coração falou mais alto. Catamos o equipamento e seguimos a mulher. Bem perto da li, caído no chão, um menino de no máximo 5 anos de idade, um menino de rua, sujo e cheirado de cola, passava mal, praticamente desmaiado, enquanto populares faziam aquela tradicional rodinha deixando-o na berlinda.

A mulher disse que alguém já tinha chamado a polícia. Ligamos a câmera e eu, muito tocada pela cena, peguei o menino sujo no colo e comecei a chorar, embalando-o. Alguém gritou "ele está sujo, deve ter piolho!" . Não liguei, peguei o microfone e comecei a falar. Disse que era o dia do aniversário do meu filho, que ele teria um bolo, um presente, uma mãe. Que o menino no meu colo não tinha nada. Nem amor. Nem colo. E não era um drogado, era um menino. Era um pequeno brasileiro sem chances. E que era contra isso que estávamos lutando. Que era por isso que estávamos todos na rua. Querendo um país justo com seus filhos, com educação, saúde, com um mínimo de amor. Chorei muito, embalando aquele menino sujo. Gravamos tudo. A polícia chegou. Desceram todos, um policial já foi pegando o menino do meu colo para colocá-lo na viatura. Segurei-o pelo braço e perguntei: "você tem filhos?". "Tenho", o policial respondeu. "Então, não faça com esse menino nada que você não faria com seu filho". Os policiais levaram o menino, a roda se dispersou. Pedi a equipe que gravasse o viaduto do chá, de longe, com todos os caras-pintas. Eu queria editar aquela matéria com a música O Bêbado e o Equilibrista, caía a tarde feito um viaduto. Falando da anistia, de Clarice Herzog, do irmaõ do Henfil, de tante gente que partiu, morreu, com a ditadura. A matéria foi ao ar. Foi uma comoção. Não houve quem não chorasse. Foi escolhida como minha melhor matéria do ano. Foi reprisada. Eu estava no estúdio, vendo a reprise. O programa era ao vivo, transmitido daqui de São Paulo, na Cada Verde.

Vieram me chamar no estúdio. Tinha alguém no telefone, na maquilagem, querendo muito falar comigo. Atendi. Era dona Mariza. Minha primeira professora. Sua voz de senhora, chorando, mas muito digna, emocionada, me disse : -"Eu tenho muito orgulho de ter sido a sua primeira professora, que a alfabetizou, e de alguma forma, participou da sua história para fazer com que você chegasse a ser a profissional que é hoje, a mulher que é hoje, a cidadã que você é". Chorei muito, muito. Fechei ali um capítulo muito importante da minha vida. Um capítulo escrito por caminhos tortos, cheios de pedras, mas que de alguma maneira confusa, me levaram para o lugar certo. Fecho aqui este capítulo também.


Capítulo Três.
A gente nunca sabe o que nos espera. Nunca. Não esperava receber o email que entrou em minha caixa postal, vinda da Leda Garcia Da Eira, brasileira que viveu muitos anos no Canadá e está voltando para o Brasil e deu um up-to-date na minha visão anos 70 do Canadá. Além da violência nos grandes centros como Toronto, dos pedintes de semáforo, saudáveis e cheios de piercing, a sujeira também se faz presente em cidades como Montreal, talvez, segundo ela, mais suja do que São Paulo. O Canadá não é o paraíso que a imprensa ainda descreve e que ilude milhares de imigrantes que insistem e acreditar que Shangri-lá existe.
Mas a USP foi Sangri-lá para mim. Aos 17 anos eu era uma adolescente alegre e despirocada, que costurava as próprias roupas em casa. Foi com uma blusinha de algodão xadrez, vermelha e branca, toda costurada com elastex, que conheci pela primeira vez o Instituto de Física da USP.

Graças a Leda, estou consciente de que o que vi em 74 não é o que está lá agora, mas acredite, não é tão diferente assim. Estive no Instituto de Física há poucos meses e mesmo com as mudanças físicas, novos prédios, outras caras, é o mesmo lugar.

Não importava mais naquele momento, a escada que me levou até lá. Eu tinha entrado na maior e melhor Universidade brasileira, graças a mim mesma. Nunca subi ao alto de um pódio mas os atletas devem sentir isso muitas e muitas vezes. Não é à toa que choram, ficam emocionados e estouram champagne. Eles, ainda, estão diante do público que os ovaciona. Eu, como sempre, estava sozinha. Parece outra incoerência, que eu, tão ativa, tão viva, energética e risonha, seja assim, sozinha. Hoje, vivo praticamente isolada com minha família. Não damos festas porque não temos quem convidar e não é raro perceber no carro, quando estou com o celular no viva voz, que não tenho ninguém para quem ligar a não ser para meu marido e meus filhos. Meus pais, talvez, mas com eles o assunto é sempre o estado de saúde.

Minha calça jeans era um caso à parte. Muito, muito justa. Meu peso podia não ser o ideal, mas eu estava bem e fazia questão de ajustar minhas calças para que ficassem com cintura marcada. Não há explicação possível, já que mudei muito de casa, de família, de cidade, de profissão nos anos que se seguiram, mas eu ainda tenho, na primeira gaveta do lado direito do armário, na minha casa de praia, os restos mortais dessa mesma calça, sob forma de um short. De vez em quando, quando estou acima ou abaixo do peso, pego o short praticamente podre e experimento minha forma de adolescente, só pra ver se a bunda entra e se a cintura fecha. Dependendo do momento, até entra. Nunca mais fechou o botão. Mas a esperança é a última que fecha.



.Capitulo 04

Atendendo a um pedido e duas ameaças, vamos ao capítulo 04
Entrei no Instituto de Física da USP, Universidade de São Paulo, no longínquo ano de 1975. Muita gente nem tinha nascido. Muita mesmo, quase 2 bilhões. De acordo com um dos meus sites favoritos, o Musée de L'Homme, a população do planeta aumentou em 54% nos últimos 25 anos. Se eu soubesse que tanta gente viria eu teria feito um bolo. Mas na época eu não queria saber da população do globo terrestre,eu só queria saber do mundo novo que se abria na minha vida e que além de uma carreira,uma profissão e um diploma, oferecia grandes possibilidades de... namorados.

Nunca fui bonita e se de vem em quando uma saia curta me cai bem, credito o efeito mais à roupa do que a mim mesma. Ser gostosa me parecia tão fora de cogitação que interna e inconscientemente nunca investi minhas fichas nesse tema. Porém, por um estranho e insondável mistério do cosmo, sempre fui muito bem recebida pelo sexo oposto e uma dezena de representantes do grupo já quiseram casar comigo. E metade teve êxito. Isso tudo, no entanto, viria depois do primeiro impacto que a universidade causou em minha vida.

Em 75 eu tinha 17 anos e morava com meus pais no bairro de Vila Galvão, Guarulhos, município da Grande São Paulo que na época não estava nem integrado à cidade. As ligações eram interurbanas e os números de telefone só tinham 6 dígitos e quando o táxi passava a ponte sob a Fernão Dias eu já sabia que o motorista cobraria 50% a mais da corrida. Safadeza, pois os 50% deveriam ser cobrados apenas sobre a curta distância entre a ponte e minha casa.


Até hoje sonho com aquele tele-transportador do seriado Jornada nas Estrelas, em que se entra num tubo virtual e depois de uma rápida desintegração, reintegramo-nos no ponto de chegada. Rezando pra que a mosca não entre conosco, como aconteceu no clássico filme preto e branco de mesmo nome. Se o forno de microondas tivesse essa função o trânsito de São Paulo estaria resolvido. Mas nos anos 70 o forno de microondas não existia e o único jeito de chegar de casa até a USP era ir de ônibus, pela linha mais longa da então CMTC, Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo, a linha Jaçanã-Cidade Universitária, que ía de ponto final a ponto final em meras duas horas e meia.

Mas eu não morava em Jaçanã, como dizia a letra de Trem das Onze, dos Demônios da Garoa. Eu morava em Vila Galvão e para chegar até o busum que levaria à Universidade, eu tinha 2 opções, outro busanfa ou uma carona com meu pai, de fusca e uniforme, que seguiria até o Campo de Marte,no Parque da Aeronáutica.
Não sei se devo mencionar o fato de eu ter que voltar da Física para casa o que significa mais duas horas e meia de trajeto e um total de 5 horas de viagem. Mesmo naquela época os dias também tinham 24 horas. E a melhor maneira de aproveitá-los um a um era acordar cedo.

Não sei a que horas meu pai preparava o café mas às 5:30 ele me deixava no ponto final do Jaçanã e seguia para o Campo de Marte, no Parque da Aeronáutica, em Santana. No inverno o dia ainda não tinha nascido a essa hora e o céu era coberto de estrelas. Eu, com uma mochila de lona velha nas costas levava uma raquete de tênis mais velha ainda para fazer aulas gratuitas no campus da USP. E, quando não havia lugar pra sentar, eu viajava no ônibus lotado, com gente batendo na raquete durante muitos kilômetros. E mesmo sem saber física eu sentia na cabeça a reação do cabo me batendo no crânio e foi mais pelos hematomas do que por falta de jeito que dois semestres mais tarde eu desistiria do curso nas quadras.

A Física era um lugar muito legal. Os professores pareciam todos cientistas loucos e os colegas, idem. Havia de tudo. Hippies velhos, gente rica, estudantes pobres do interior. Devo boa parte do que sou ao que aprendi na faculdade como jogar truco, aprender noções de bridge, treinar ping-pong. Aprendi muita coisa interessante sobre o universo também, o macro e o micro cosmo e durante muitos anos usei armas poderosas para impressionar as pessoas. Não é fácil resistir ao charme de uma conversa sobre física quântica e as experiências teóricas de Einstein e a relatividade.

A Física é realmente uma ciência encantadora, a mais filosófica das exatas. Sempre digo que a melhor coisa que fiz na vida foi ter feito física e a segunda melhor foi ter largado-a.

Durante a graduação, o curso de Bacharelado em Física, de 75 a 78, progredi bastante no que diz respeito ao transporte. Do Jaçanã passei para uma carona, da carona para um fusca velho próprio, meu super bólido branco que não subia ladeiras em geral e, finalmente, saí da casa dos meus pais, o que me garantiu muito trabalho, muito dureza e uma bicicleta para chegar às aulas.

Sempre trabalhei, desde que me entendo por gente. E não foi diferente durante todo o curso de física. Além de estudar, desde o primeiro semestre eu tive bolsas de iniciação científica, tanto do CNPq quanto da Fapesp. É engraçado ver hoje, o diretor mór da Fapesp, ex professor do IFUSP, o Perez, e ex-orientador do meu primeiro marido, físico-matemático. Também é curioso hoje, lembrar que a mesma Fapesp que era meu inferno quando chegava a época de entregar os relatórios semestrais da bolsa de pesquisa é hoje o site onde registramos nossos domínios.
Mais curioso, quando penso nisso, é ver na parede do meu escritório, alguns diplomas de participação de cursos com o Dr. Roberto Salmeron, um grande físico do CERN, exatamente o lugar onde a Internet foi concebida. É como se eu estivesse ligada à rede desde a adolescência. Ou pelo menos, aos computadores.
A PRIMEIRA SEMANA DE AULA - UM CHOQUE

Um choque. Não que eu estivesse no laboratório de eletricidade. Um choque cultural, de todas as formas possíveis e imagináveis. Na primeira aula de Física I, o professor, ou melhor, o mestre, falou algo sobre uma base neperiana, simbolizado pela letra 'e'. Eu nunca tinha ouvido falar nessa palavra e, da carteira onde eu sentava eu entendi 'leperiano'. Estava errado e por isso mesmo não consegui encontrar o termo na Enciclopédia Barsa.

De cara, no primeiro dia, eu que sempre fui boa aluna e menina inteligente, descobri que eu era absolutamente ignorante e que tinha feito um colegial fraquíssimo. Eu não sabia nada. Nada de nada. E ainda era virgem.

Esse detalhe foi resolvido no primeiro ano de faculdade mas não quero penetrar muito a fundo nele. O tema é por demais amplo para caber numa autobiografia genérica. O susto maior foi conhecer no primeiro semestre o computador, o maior da América Latina,que ficava na Escola Politécnica, a Poli.

Era uma sala inteira, uma coisa enorme. Para rodar os programas era preciso antes perfurar os cartões amarelos da IBM nas perfuradoras, com banquinho e teclado. Depois, era passar aquela pilha de cartões perfurados pela leitora e esperar o programa sair do outro lado em formulários contínuos. Era divertido.
Aprendíamos a linguagem Hipo, de hipotética, depois Fortran, depois Cobol. Aprendei a fazer algoritmos, a escrever alguns programinhas básicos. Se eu soubesse na época onde tudo iria dar eu teria me dedicado um pouco mais. Mas foi o suficiente para ser hoje uma mulher de 42 anos com um passado cibernético.

A física abriu minha cabeça, a USP, meu corpo. Não sei precisar o ano em que a piscina olímpica da Cidade Universitária foi construída mas como prestei o último vestibular de exatas, o MAPOFEI (Mackenzie, Poli, FEI), de 74 para 75, sei que foi depois disso porque eu vi a piscina sendo construída. E nadei muito, muito em suas águas.

Eu passava o dia inteiro na Física, a quem nunca me dirigi como 'faculdade'. Era a Física mesmo. De manhã, eu fazia algum curso como tênis, ioga ou judô, que me foi muito útil para as crises de ciúmes. Uma vez peguei uma garota pela gola e joguei-a no chão ao vê-la abraçada com meu então namorado e anos depois, primeiro marido. O curso era gratuito mas os golpes funcionavam! O ciúmes eu venho tratando ao longo das últimas duas décadas e confesso, melhorou muito já que nunca mais cheguei as vias, nem as de fato nem as públicas. Na hora do almoço, diariamente eu ía para o CEPEUSP, o centro de práticas esportivas na USP, nadar meus dois kilômetros de crawl embalada mentalmente pela música dos Escravos de Jó.

Eu não tinha nenhuma intenção mântrica ou zen, eu apenas era louca mesmo. E enquanto os escravos de Jó jogavam caxangá seja lá o que isso for, eu tirava, punha, respirava e deixava nadar.

Foram anos e anos fazendo isso todo dia, exceto às segundas feiras quando a piscina fechava para manutenção. Acontece com quase todas as piscinas de clube também. Segunda feira, nada.

Fiz quatro anos de bacharelado em Física, mais dois anos de mestrado, mais dois anos na ECA-USP à noite, curso de comunicação social, oito no total. Mas freqüentei a piscina mais tempo do que isso, muito mais. Continuei indo como ex-aluna, regalia que perde o prazo depois de algum tempo, e como dependente, embora eu já estivesse separada do meu primeiro marido, professor bolsista do Instituto de Matemática da USP até hoje, eu continuava usando a carteirinha. Vou me lembrar desta nódoa pública quando me candidatar à presidência da República. Meus assessores me lembrarão de confessar esses pequenos deslizes antes que meus opositores o façam.
Não cheguei a ser uma eximia nadadora mas o esporte manteve meu corpo minimamente em dia para que eu pudesse participar de outra prática muito comum às garotas da piscina da USP, o topless. Sim, amigos da rede globo, eu fazia topless no final dos anos 70 e começo dos 80. Eu não estava com essas bolas todas que são vendidas em centímetro cúbicos de silicone hoje em dia. São tantas as mulheres que já colocaram que é surpreendente que ainda exista um par de seios originalmente de carne. Minha última surpresa foi descobrir que a Ana Maria Braga trocou suas próteses para que fiquem iguais as da Xuxa. E eu que nem sabia que o peitoril da dona Ana era comprado. Mas a autobiografia é minha e eu não quero falar delas por enquanto.
Durante o curso de graduação tive três orientadores, o Silvio Herdade, um senhor velhinho que provavelmente já deve ter ido encontrar os átomos do além, o João Arruda de Toledo Neto, que fumava cachimbo o tempo todo e esparramava fagulhas incandescentes num raio de dois metros a partir de seu centro geométrico, e o José Goldenberg, que não era exatamente meu orientador, mas com quem trabalhei um tempo como monitora.

José Goldenberg sempre foi importante na Física, era autor de vários livros didáticos, todos muito ruins. Na minha época, os livros bons eram os americanos e os russos, mas devido a desentendimentos entre as potências, era bom guardar os livros em prateleiras separadas.
Trabalhei sempre no mesmo lugar o Acelerador Linear, um laboratório subterrâneo onde vivia como uma minhoca. O nome da tese é vasto e complexo e eu já não tenho mais certeza da ordem das palavras. Mas é algo como "O efeito de quadrupolo elétrico na ressonância gigante por eletro e fotofissão do isótopo 236 do Urânio". É algo que impressiona num primeiro momento. Num segundo momento, também, mas na prática a vida era bem mais simples.

Prá começar, não precisa ficar com medo do Urânio. Ele não morde, embora seja um ótimo nome para cachorro. Tudo bem, o urânio é um elemento químico radioativo, fissionável, usado em usinas nucleares, mas ele é bonzinho quando domesticado em laboratório.

Nosso trabalho era o seguinte: dentro de uma câmera metálica, bem no centro, o alvo, colocava-se a fonte de urânio a ser fissionada. Ao redor daquela espécie de panela metálica, havia janelas. Sobre essas janelas sobrepunha-se pedaços de mica, aquele minério em camadas, reluzente, outrora usado nos ferros elétricos.

O acelerador linear, com um feixe de fótons alvejava esse alvo de urânio. O coitadinho então, com aquela carga de energia toda, só podia se fissionar mesmo. Mas não sem antes entrar num certo 'modo' de vibração antes de partir-se. Esse modo de ressonância, de vibrar na mesma freqüência de um agente externo é um fenômeno do mundo clássico, esse onde escovamos os dentes e perdemos as chaves. Vou abrir um à parte para falar dele já já. A ressonância gigante como o nome bem diz, é este efeito amplificado. E o quadrupolo elétrico entra na história como uma descrição desse tipo de estado em que o núcleo do isótopo 236 do Urânio vibra antes de fissionar-se.

Depois que tudo se despedaçava, o que acontecia? Os pedaços do alvo fissionados faziam aquele 'big bang', e batiam em todas as janelas. Claro, é tudo muito pequeno e invisível. Por isso, recolhíamos as micas de acordo com os ângulos de espalhamento, atacávamos as placas de mica com um ácido para que as perfurações dos estilhaços fossem aumentadas o suficiente de modo a serem vistas no microscópio.
Mas era qualquer microscópio, era "O" microscópio eletrônico. Com esse microscópio de varredura, varríamos as plaquinhas de mica e contávamos os buraquinhos. Depois, estudávamos a distribuição de acordo com os ângulos.

Veja só que coisinha tão bonitinha do pai da Relatividade...Tanta empáfia por ser física, cientista e lá estava eu contando buraquinhos.

De vez em quando eu tinha meus arroubos infanto-juvenis de cientista e usava o horário do almoço, depois da piscina, para ver outras coisas no microscópio. Outras coisas incluiu uma vez, ver espermatozóides humanos. Conforme a luz batia, eles íam nadando e morrendo. Foi lindo e horrível, um genocídio.

E não me pergunte, please, como consegui as amostras. Sempre tem um voluntário disposto a sacrificar-se pela ciência. Como diz o meu amigo Flávio de Souza, no papel do Tíbio, da dupla Tíbia e Perônio, do Castelo Rá-tim-bum, "tudo pela ciência".

Agora vamos ao já já e a beleza da Internet. Viva a Web, mesmo. No primeiro ano do curso de bacharelado, mostraram aos alunos um filme em 16mm clássico dos efeitos de ressonância, a destruição da ponte de Tacoma, ou Tacoma Narrow Bridge que depois de balançar como um elástico, com carros passando e tudo, despedaçou-se. Isso aconteceu em 1940 e impressiona muito, porque aparentemente, não se entende a causa. Na época era a terceira maior ponte suspensa dos Estados Unidos e havia sido concluída quatro meses antes do desastre.

Não foi por causa da Neuzinha mas foi por causa de uma brizola que bateu. A brisa, ou o vento, tinha a mesma freqüência de vibração natural da ponte. Você sabe, tudo vibra num certa freqüência. Por isso os soldados, que marcham na mesma freqüência de passo, ao passarem por uma ponte, mudam a cadência.

As fotos estão neste site onde você também poderá ver o vídeo em preto e branco, com narração original, ótima, ou, colorido , com mais detalhes, aqui. Pois eu vi esse filme impressionante em 1975. Vinte e cinco anos mais tarde, podemos todos vê-lo na Internet. Eu acho isso o máximo. Mas ainda é pouco diante do que nossos netos verão com o mapeamento do genoma humano.

Eu não estarei mais por aqui para me transformar na ruiva alta e peituda de lábios carnudos e olhos verdes que sempre fui em essência mas cujo download a natureza abortou ao meio. Mas é lindo estar viva para acompanhar toda essa evolução.
O tema física não acaba aqui, mas o capítulo sim. Por alguma razão, preciso muito agora, contar por que abandonei essa carreira tão maravilhosa para entrar para o mundo da comunicação. Por enquanto, um breve adeus a Einstein, Schröedinger, Heisenberg e um olá para Marshall McLuhan.



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