Minha Vida Comigo
9.24.2004
 
Capítulo 13 - Hermann's Airlines ou viajando pelo interior da maionese

Se alguém me perguntasse há alguns anos o que eu mais gostaria de fazer na vida eu responderia na lata: viajar pelo mundo. Sempre imaginei que o ser humano fosse originalmente programado para ficar girando pelo planeta, de galho em galho, de continente em continente, buscando a si mesmo em círculos até ficar cansado e aceitar a morte como a grande viagem, a mais bela de todas, aquela que não exige passagem, passaporte, reserva no hotel, declaração de bagagem e nem as famigeradas fichas de entrada e saída dos países perguntando se você está levando sementes ou se viaja com mais de dez mil dólares.

Sempre imaginei que viajar fosse a coisa mais fina e elegante que um ser humano pudesse praticar. Pessoas viajadas sempre me pareceram mais cultas, experientes e vividas, capazes de grandes conversações e possuidoras de um talento especial para a reflexão filosófica que advém da observação e da vivência multicultural.
Isso era o que eu pensava, antes de tomar consciência que pessoas de todo tipo viajam, inclusive aquelas que jogam lixo por todos os continentes, as que fazem xixi nas paredes de todo o planeta e as que não conseguem resistir à tentação de deixar o banheiro pior do que estava quando entraram.

Eu devia ter aprendido tudo isso bem cedo pois logo que eu nasci fui passar um tempo no Paraguay. Nunca perguntei nada sobre isso para meus pais porque achei que devia ser um assunto muito íntimo. Mas tenho umas fotos neste portentoso país das guarañas e muambas. Aos 3 anos morei um ano na costa leste dos Estados Unidos. Tenho algumas poucas fotos, já coloridas nesta fase. Aos 12 fui morar dois anos no Canadá. Depois disso fui várias vezes para os Estados Unidos, a passeio ou a trabalho, para lugares tão civilizados como Nova York ou Denver, no Wyoming ou cidades tão esquecidas como Boise em Idaho, ou Casper no Wyoming. Ninguém acredita quando eu conto mas da janela do hotel em Boise, vi um tumbleweed, aquela espécie de bola de mato seco que rola com o vento. Há quem jure que isso só existe em filme americano, tanto quanto a areia movediça. Mas embora eu ainda não tenha visto nenhuma areia movediça, juro que vi um tumbleweed rolando da janela.

Hoje pela manhã, cheguei de Paris com toda a família. Eu já conhecia a cidade, mas sem os filhos. Viajei pela Europa há alguns anos com meu marido, de carro e fui a co-pilota mais eficiente que o guia Michelin já conheceu.

Viajamos em cinco e não fosse o número ímpar cairíamos quase na categoria da arca de noé. Pois éramos um casal de meia idade, uma jovem na flor da idade, um pré-adolescente naquela idade e uma criança que nem pensa no assunto. Foi cansativo, divertido e inesquecível, não necessariamente maravilhoso. Mas foi importante, essencial, como tudo o que a gente aprende na vida.

Não vou ficar aqui descrevendo a Torre Eiffel mas salvo prova em contrário são 688 degraus para subir até o segundo estágio, onde fica a lojinha de souvenirs. Também não vou ficar falando sobre a confusão dos carros circulando em volta do Arco do Triunfo, cada um querendo virar à direita numa das 12 ruas e avenidas que saem de lá. Não sei se são mesmo doze, porque é um círculo e a gente esquece onde começou a contagem. O que eu sei é que além de mostrar a monalisa para meus filhos fomos até a casa onde Leonardo da Vinci morou de favor aos 64 anos, em Amboise, no vale do Loire.

Esse sim foi um passeio que valeu a pena.
Depois de andarmos dias e dias nas estações de metrô com cheiro de xixi e cheio de gente mau-cheirosa, alugamos uma Espace da Renault para sete pessoas. E, claro, como Paris não tem lugar para estacionar como sempre, acabamos levando uma multa. Já levamos multa até em Tiburion, uma cidadela charmosa perto de São Francisco, numa outra viagem que fizemos de carro, desta vez, nos estados Unidos, entre Los Angeles, São Francisco e Las Vegas.

O carro foi providencial para os passeios longos, como nossa revisita a Versailles. As crianças acharam chato. Eu achei repetitivo. Mas o fato de poder praticar francês sempre vale a pena, mesmo que seja só para dizer ao porteiro que são dois adultos, uma estudante e deux enfants. Pra gastar o francês, tem que ser na França mesmo, porque no Canadá o dialeto é um pouco diferente e na Martinica, onde estive numa pré-lua de mel, onde só fazíamos três coisas, só consegui emitir sons parecidos com os que o Guga emite na quadra, por motivos outros que o tênis. Enfim.

O melhor dia da viagem foi nosso passeio ao vale do Loire, recomendado pelo Marcos Aranha, via ICQ. Marcos, que conhece o mundo, disse que de todos os passeios que fez, um dos melhores foi esse, de carro, com os filhos, pelos castelos do Loire.
Como acordamos tarde, não pudemos aproveitar tanto o dia mas fomos ver o castelo em Blois, cidade charmosa e encantadora, outro em Amboise e o mais maravilhoso de todos, o que não poderíamos perder, o que recomendarei para sempre para todos, o castelo de Chenonceau. Não há como comparar, como descrever. É o famoso 'valeu a viagem'. Só vendo de perto, não tem jeito. Tem que pegar o avião e ir até Paris. De São Paulo até lá pela TAM, são 11 horas, 40 minutos, quatro banheiros num avião que era da Golf Airlines, cujo leasing de 6 meses está para terminar e não será renovado, o que explica o fato de muitos dos aparelhos não funcionarem e assim, não exibirem filmes, nem mesmo nas poltronas que não levantam os braços, neste maldito avião que só tem 4 banheiros para toda a imensa classe econômica. De Paris, mais uns 230 kilômetros de carro pela A1 em direção à Tours. Não importa, vale, sempre vale, no vale, do Loire.

Chenonceau tem jardins dos dois lados. Isso, depois de passar por uma alameda bucólica e atravessar a ponte do castelo.

Essa é a parte boa. Mas levar crianças tem o outro lado. na EuroDisney, uma solene bobagem, em cada lojinha, uma briga. Até que meu filhos cismou que queria comprar uma arma. Ele adora armas e eu, adeio todas. Depois de muita negociação, chegamos a um acordo, que envolvia uma ridícula pistolinha de brinquedo, muto infantil, daquelas que ficam ao lado do caixa na hora de pagar e partir, uma última tentação de consumo. Desde o princípio eu sabia que não ía dar certo. Muito a contragosto, comprei-a.

Na hora de fazer as malas, eu senti que não estava certo botar uma pistola na mochila de um menino de 12 anos, mesmo que ela fosse de brinquedo, mesmo que ficasse na caixa junto com os legos e a catapulta medieval. Senti e tinha razão. No aeroporto Charles De Gaulle, ao passarmos pelo detetor de metais meu filho apitou de norte a sul. Era a fivela do cinto e mais todos os papéis metálicos que embalavam os chicletes no bolso. Porém, ao mesmo tempo em que ele apitava, sua mochila passava pelo raio-X e o segurança viu a pistola. Parou tudo. Abri a mochila, tirei a pistola e por sorte, os franceses não são como os chatos dos americanos, capazes de condenar um menino de 6 anos por assédio sexual por beijar uma amiguinha de 4. O francês pegou a arma de brinquedo, fingiu que atirou no outro colega e riu muito. Aproveitei a onda e expliquei que meu filho era um traficante internacional de goma de mascar. Raquel então, começou a rir muito e o francês disse que ía retê-la por tirar sarro dele! No entanto, a arma foi apreendida, colocada num envelope e despachada no avião. Não preciso nem dizer que depois de chegar ao Brasil tive que procurar um agente da TAM pra recuperar a arminha. Da próxima vez não compro e pronto.
Viagem é como a felicidade é feita de momentos. Sentar numa pracinha em Blois, cidade medieval e comer uma baguette com presunto e ementhal. Depois, comer uma tortinha de morangos frescos com creme. Passear pelas vinícolas, atravessar o Loire com a família e cantar "O rio...de Piracicaba...". Encontrar um restaurante italiano e chorar de emoção por compreender todo o cardápio.

Aqui, uma pausa para falar sobre comida. Engordei, of course, mas nada que não possa ser perdido em pouco tempo e que não tenha valido o prazer. Se bem que, prazer para cada um é muito diferente. Minha filha Anita, de 6 anos, acha que prazer é segurança. E assim, na primeira noite em Paris, quis comer no McDonald's. Fomos a um Mac próximo ao Opera e lá encontramos algumas diferenças da outra viagem. Por influência da gastronomia francesa, cada dia tem um sanduíche especial dedicado a uma região da França. Comemos um delicioso Samedi. Tivemos momentos de glória, como um pequeno restaurante perto do hotel e momentos de dedespero, quando perdemos a hora da volta de um passeio e encontramos tudo fechado nas redondezas. O único restaurante aberto e disposto a nos servir às 11:30 da noite trouxe escargots tão queimados que achei que eram Escargots à Joanna D'Arc. Sem falar da minha salada de galinha, um suposto salpicão, que veio com arroz cozido no meio, parecendo mais uma reciclagem de todos os restos que sobraram dos pratos durante o dia. Bleargh.

Meu humor também varia muito em viagens. Há dias em que acordo cantando e em outros, estou cansada e com vontade de passar o dia dormindo. Meu marido acha que a gente tem que aproveitar ao máximo o tempo em viagem e não deixa ninguém dormir, descansar ou parar por um minuto. Não é fácil. Como eu mesma disse, ía faltar programa. Tanto é que para gastar o resto do filme da máquina e o resto do tempo da viagem, ficamos dando voltas de carro em Paris, com chuva, achando ótimo o terrível engarrafamento.
O problema foi...atualizar o Farofa. Achei que ía ser bico, era só achar um cyber café. Hum-hum. Foi quase fácil, exceto pelo fato de ter sido impossível. Começou com uma ironia terrível do destino: a lista de cyber cafés que eu peguei da Internet antes de viajar, não funcionou. E a primeira tentativa foi assim:

Paris é pequena, uma quase batata assada recheada com o rio Sena, dividida em 'arrondissements', arredores, começando do centro, que é o no. 1, ótimo lugar para começar e seguindo em espiral até o vigésimo.

A numeração é referente aos prédios e não à metragem, assim, o número 57 será a 57a. construção da rua. E lá fui eu, andando à pé, com frio, marido, filhos, procurando o maldito cyber café. Pra piorar, era domingo, estava tudo fechado, mas eu só queria ver 'aonde ficava'. Não ficava. Não havia nenhum cyber café naquele endereço da Internet.

Procurei outros em outras ocasiões por perto de onde estávamos e não achei. Quando víamos um na rua, como no Quartier Latin, meu marido não queria parar o carro. Quando víamos uma saída do metrô indicando um cyber café, eram as crianças que queriam voltar logo pro hotel. E depois dos primeiros 5 dias, finalmente, rodando de carro, descobri que no final da própria rua onde eu estava hospedada, lá estava um cyber café.

Na volta do passeio, fui decidida até lá, andando feliz, louca pra atualizar meu site através de um blogger. E ao chegar lá, dei com meu nariz vermelhor e gelado na porta. Tudo, quase, fecha às 7 da noite. Era sexta feira, 7:01. E mais uma detalhe, não abre nem aos sábados e nem aos domingos. Definitivamente, os parisienses não dão nenhuma importância à Internet. Estando em Paris a gente não só entende por quê como também acha que eles fazem muito bem.

Contar viagem é sempre uma coisa chata para quem lê, é o que eu penso, porque viagem é para viver, sentir, experimentar. Pior que isso só mostrar video caseiro do casamento da neta, do batizado do sobrinho, da formatura do filho. Só interessa pra quem participa.

Por isso, não quero transformar esse texto num diário de bordo, num relato organizado de viagem e sim, falar um pouco dos sentimentos humanos que afloram quando estamos sem referências da nossa vida diária.
O que temos para vestir é o que levamos na mala. O que vamos comer passa a ser uma escolha múltipla e cheia de surpresas, mexendo totalmente com nosso sistema operacional interno. Todas as coisas que botamos goela abaixo são estranhas para as entranhas.

Arrumei algumas brigas e discussões durante a viagem o que prova que meu francês até que está bem bom. Você só percebe que fala outra língua quando é capaz de brigar, momento em que seus sentimentos precisam ser imeditamente convertidos em comunicação compreensível sem passar pela 'paradinha' da tradução mental. Em outros casos, não foi preciso brigar porque ficou claro o desprezo que alguns moradores locais tem por estrangeiros em geral. É a velha xenofobia do velho continente, especialmente em relação à pessoas do novo mundo, do terceiro mundo.

Um exemplo? Quando todas as roupas estavam praticamente sujas e as opções para o dia seguinte eram ir à loja e comprar meias, calcinhas e camisetas, decidi que procuraria uma lavanderia. Da janela do hotel eu podia avistar três, exatamente diante da porta. Como as crianças praticam muito o esporte de derrubar catchup, molho e refrigerante na roupa, não havia mais um moletom decente para que vestissem.
Na primeira lavanderia, quando perguntei se lavavam roupa de criança, aquela cara de nojo. Criança? Que horror! Eles lavam até roupa de cachorro mas criança é uma coisa super mal vista em Paris. Excetuando-se pela péssima Euro Disney e o Parque do Asterix que, pela terceira vez não fui, nada é feito para criança. Se não me falha a memória há poucos anos a França promoveu uma campanha para que os casais tivessem filhos, pagando-os com bônus como incentivo além de pagar de 16 a 26 semanas de licença maternidade. O mesmo aconteceu num restaurante que olhou para Anita, de 6 anos como se fosse uma ofenda levar uma consumidora tão pequena.

A segunda lavanderia disse que poderia lavar, sim, mas que levaria 14 dias. Achei uma maneira elegante de dizer que não. A terceira, com um senhor muito simpático, disse que tinha muito serviço e não poderia aceitar o pedido mas deu uma explicação: muita gente tirou os mantôs e casacos do armário e mandaram lavar. Europa tem dessas coisas de mudança radical de estação. E, de fato, o senhor conversou comigo sob uma avalanche de cabides alinhados como um exército. Assim, voltei para o hotel e prudentemente lavei calcinhas e cuequinhas das crianças, pares de meias de todos e pendurei em todos os lugares improvisados do quarto. Eu sei, eu sei, todo mundo seca coisas atrás do frigobar mas este era embutido no armário. Não vou descrever esta cena miserável de roupas úmida, mas lembrei com saudades dos fios retráteis sobre a banheira que muitos hotéis colocam exatamente para este fim.

A viagem deixou um saldo positivo na relação entre todos nós. Conviver com a própria família 24 horas durante vários dias atualiza as informações. É sempre bom que alguma pessoa além da empregada saiba o que seu filho gosta de comer.


Capítulo 14 - Ah, se eu fosse você...

Eu acho a vida curta. Com o passar dos dias vividos, vou encurtando a minha e assim começo a achar que pessoas que se vão aos 88 anos estão indo cedo, na flor da terceira juventude. Poderiam ficar mais, tomar mais um cafezinho, ou um chá com bolinhos como fazem os imortais da Academia Brasileira de Letras.

A vida deve ser vivida, nem suposta nem adivinhada: vivida. Acabei de perceber isso agora mesmo. Para colocar o link do site oficial da Academia Brasileira de Letras, fui direto ao endereço que imaginei: www.abl.org.br mas dei de cara com a Associação Brasileira das Editoras de Listas Telefônicas (e guias informativos). Muitas vezes a gente tem certeza que acha mas na hora H descobre que se enganou. É assim mesmo, enganar-se é um verbo a ser muito conjudado pela vida afora.

Completei 44 anos e entrei para a seleta safra dos que chegaram ao planeta em 1957 e que estão passando neste momento pelas piadas de tração nas quatro rodas, motor 4x4, on-road e off-road. A piada é realmente válida, sinto-me pronta pra enfrentar qualquer terreno, especialmente a vida terrena. A idéia de morrer está fora de cogitação e por enquanto só serve de tema para conversas e piadas, nada mais. Nem sofrimento.

Entre os vários momentos em que falo sobre a morte ou o após-a-morte, está um que contei recentemente a meu dentista. É o momento da consciência-caveira, ou o ego-esqueleto. Sempre me ocorre que, depois que eu tiver morrido e desencarnado, não apenas minha alma sairá da minha carne como também minha carne sumirá de cima dos meus ossos. Um dia, estarei deitadinha sorridente, com meus ossinhos e todos saberão que alguns dos meus dentes não são originais. Todos verão pela minha arcada dentária quais dentes foram tratados, arrancados, perdidos, implantados ou apenas, mal cuidados. Sempre que penso nisso fico muito chateada pois alguém que me amou em vida apenas pelo meu sorriso ficará decepcionado ao descobrir que algumas peças do meu lego bucal não eram verdadeiras. Depois, me consolo, pensando em quantas outras caveirinhas mulheres terão dois saquinhos cheios de silicone apoiadinhos sobre os ossos do tórax.

Falando em estado-caveira, lembrei-me de um insight que tive quando a Raquel, minha filha de estimação, decidiu visitar o túmulo do Jim Morrison na nossa última visita à Paris. Não importa em que época a pessoa tenha vivido, se ela foi enterrada em algum lugar seu túmulo estará aberto à visitação pública. Tão público que na Internet existe o Find-a-grave, com uma base da dados incrível a respeito de personalidades que já voltaram a admirar o gramado pelo sistema radicular. Para testar, entrei agora mesmo e digitei Sinatra e encontrei a lápide do famoso Old Blue Eyes, que, coincidência ou não, é azul.

Me ocorreu que até a pessoa mais reservada, aquele ídolo que não suporta o assédio dos seus fãs, terá que conviver por toda a eternidade com visitações constantes, gente chorando sobre seu jardim, colocando presentes e conversando durante horas. Eu mesma farei isso com Woody Allen. Adoro todos os filmes dele, acho-o genial mas ressinto-me pelo fato de não ter nenhuma chance de conversar com ele. Por tudo que li, descobri que ele simplesmente odeia gente, não suporta assédio e tem verdadeira paranóia de gente que chega perto dele querendo um papinho de fã. Mas deixa ele partir deste para um cenário melhor. Vou sentar ao lado de seu retângulo horizontal e ficar horas e horas comentando todos os roteiros, os filmes e os detalhes.

Ou não.

Talvez eu não faça nada disso, talvez eu mude de idéia, talvez eu esqueça, não sei. Sim, porque além de viver essa experiência única de ser eu mesma também há este detalhe, o de que nem eu mesma sei o que vai acontecer comigo. Digo mais, não tenho certeza se há um 'o que vai acontecer comigo' escrito ou predestinado em algum lugar para que eu possa tentar o acesso e em caso de conseguí-lo, decifrar o código do previsto.

É muito mistério para cada um. Como eu disse a um amigo meu, acho que deve existir reencarnação porque D'us não vai ter tempo de fabricar tantos bilhões de almas individuais. E não deve existir destino porque não há quem possa fazer um roteiro original para cada personagem. É muito texto. Se bem que eu amigo meu muito perspicaz disse que o roteiro é um só, os personagens é que são muitos. Mesmo assim, é muito diálogo e muita rubrica pra um roteiro só.

E no entanto, é tão difícil para mim assumir a mim mesma. Estou levando décadas para fazer algo que parece tão simples, que dá a impressão de que já vem com o sistema operacional da pessoa. Mas não vem. Pelo menos, na minha década, não vinha. Talvez agora, que o mundo está mais moderno, as coisas tenham evoluído, não sei.
Só sei que cada dia é uma nova batalha de auto-conhecimento e principalmente de auto-aceitação.

E o problema original é justamente... a vaidade.

A vaidade emana após dois eventos na vida de cada um: o primeiro, a consciência de como se é e o segundo, a percepção de que poderíamos ser melhores.

A primeira parte é um show, o famoso "conhece-te a ti mesmo", que teve montagens em todo o planeta, em diferentes regiões e religiões, um show de público e crítica. Mas não pegou muito nos meios de massa eletrônico, porque na TV, por exemplo, fez muito mais sucesso o "conheça-me a mim mesma!". Na Tv, todo mundo quer ser visto, conhecido, pra ficar famoso e consequentemente, requisito para as festinhas que pagam 15 mil reais apenas pela presença do seu lindo corpinho. Ser pago pela presença é realmente o que há em matéria de fama estática.

A segunta parte é uma bad trip, evite-a a todo custo. Esse negócio de achar que a gente sempre poderia ser melhor não é do bem e só leva a gente para caminhos perigosos e sem volta. Alguns terminam num abismo, péssimo pra quem corre sem freios na vida. É olhar para o espelho e concluir que a gente poderia ter isso mais assim, aquilo menos assado, e mais dois daquilo ao ponto. OK, é legal dar um tapa, fazer manutenção, da depilação à remoção das cutículas, da limpeza profunda à correção funcional, mas sem exageros. As pessoas que tentam ser o que não são ou negar sua natureza original acabam gerando aberrações sendo o expoente contemporâneio mais famoso o caso do Michael Jackson. De tudo o que ele já passou, já sofreu, já se metamorfoseou, acho que o mais assustador, mais chocante, pelo menos para mim, foram aqueles mocassins pretos com meias brancas. Eu acho aquilo uma coisa hedionda. Aquilo sim, merece cirurgia. O resto, a gente apenas lamenta.

Claro, aqui estamos falando (eu estou, né?) apenas do plano estético. Recentemente, numa conversa com meu chefe, percebi a ligação entre a 'estética' e a 'estática'. A beleza do espelho, a que chamamos estética é realmente uma beleza parada. A gente pensa nas medidas que gostaria de ter, altura, peso, cintura, busco, quadral, tornozelo e vê que são apenas números, grandezas. Carecem de movimento e até, de nexo. Porque muita gente pode até ter os números corretos e não ter um resultado agradável. E pode até mesmo, não ter saúde. A Saúde é muito diferente da busca estética, pois a saúde é dinâmica. A saúde é movimento. Você pode ter um corpo lindo e ter péssima saúde, especialmente se este corpo foi conquistado a poder de cigarro e jejum, por exemplo.

Um atleta não tem medo das calorias que come ele sabe que caloria é sim, energia. E que o corpo é um sistema complexo, que precisa de energia para gerar movimento. E que esse movimento é que não apenas delineia o corpo como azeita melhor a máquina.
A beleza, a estética, é estática. É parada, é sem vida. É uma...natureza morta. A saúde é dinâmica, é movimento, é longevidade em vida.

Eu, nunca fui bonita, nunca me destaquei por nenhum atributo físico, embora eu já tenha recebido muitos elogios a minhas pernas. Até hoje procuro conservá-las não apenas para a locomoção e alguns esportes como também tenho certo prazer esporádico em expô-las em público. Sei que não é nada de excepcional, sou baixinha, mas me permito essa brincadeira de vez em quando. Já assumi meu pequeno tamanho e quase nem sofro quando leio na revista que só de pernas a Luciana Gimenez tem 1,20. Cada um com sua história. Eu, continuo aqui, tentando decifrar a minha.

É por ter tanta dificuldade em saber direito quem eu sou que estou convencida da inutilidade que é julgar as outras pessoas. É inacreditável como cada um traz histórias impensáveis dentro si. Você olha o motorista de táxi, o guarda na esquina, a balconista na loja, o apresentador do telejornal na TV e não tem a mais remota idéia do que ele já viveu, do que ele já fez ou o que ainda poderá lhe ocorrer.
Outro dia, meu marido fez um programa de rádio sobre o dia dos pais e uma moça que participou ao vivo, contou uma história tão inimaginável que até ele fico passado. A moça ligou (eu não ouvi essa parte, ele me contou depois) e disse que quando era pequena, bem criança, com menos de cinco anos de idade, seu pai chegou em casa totalmente embriagado e começou a bater nela. A mãe, vendo aquele absurdo, um monstro bêbado batendo em sua filha pequena, avançou em cima do pai para impedí-lo. Ele então, não sei bem como, se com álcool e fósforo, ateou fogo na mãe. A mãe morreu queimada. Tá bom prá você ou vamos ao Capítulo II da Seção Infância Traumática? Tá bom, né. Pois isso não é ficção, é real e é somente uma gota num oceano de histórias tristes da existência humana. E olha que eu nem vou falar do Holocausto a maior de todas as tragédias sobre este planeta azul.

Pois é nesse mar de horrores e tragédias humanas, neste mesmo planeta em órbita regular em torno do sol, nessa contradição incompreensível que todos nós vivemos. Quem é que pode entender que o Sol, o nosso sol, sem o qual não existiríamos, essa fonte de luz e calor tão perfeita para a vida terrestre, é simplesmente uma estrelinha de quinta no universo? Uma estrela de quinta grandeza, que, num elenco de estrelas universais seria equivalente a ...quem... uma Narjara Tureta? Ou no casting de jurados cantores seria assim... a Flôr? O Nahim? Não sei, não quero comparar, não quero ofender nenhum ser humano ou corpo celeste. Apenas estou brincando com os nomes. Narjara Tureta é um nome imbatível pra fazer humor, muito bom.

E se o sol é assim tão insignificante, se a Via Láctea não dá nem pro cheiro, então, como é que só há vida na Terra? Ou haverá vida em outro lugar? E se houver, onde? E se houver e soubermos onde, por que eles não passam aqui pra fazer uma visitinha? Ou será que eles passam e a gente é que não vê? Ou vê?

Como você percebe, as dúvidas são muitas, a vida é curta. So much to do, so little time. E o time de cada um, não dá pra saber, não dá pra prever. E é esta a razão básica para que a gente não queria ser ninguém além de nós mesmos. Imagine quantas mulheres desejaram ser Marilyn Monroe quando ela estava no auge. Imaginem o alívio que todas elas sentiram por não serem Marilyn Monroe quando a verdadeira se foi.
Mas as pessoas continuam sentindo o desejo de serem como as outras, especialmente, quando encontram um modelo ideal como habitação, digamos, como Gisele Bündchen. Fico pensando o que aconteceria se a clonagem já fosse uma técnica dominada, banal como VHS ou o CD Player. Quantas mulheres, se pudessem fariam a opção de terem a aparência da Gisele? Quantas escolheriam outras modelos, atrizes, cantoras? Quantas pessoas ficariam com a opção de serem o que são?

Uma coisa eu digo: eu ficaria comigo mesmo. Apesar de tudo, apesar dos pesares, juro. Não é nem por acreditar no projeto só, não, mas porque eu detesto perder o fim de qualquer filme, do melhor ao pior do mundo. Simplesmente, depois que eu decido acompanhar o roteiro, o enredo, eu faço questão de conhecer o desfecho. Aos 44 anos, já me acostumei com toda a história da minha vida, peguei amor pelos personagens e quero acompanhar tudo bem de perto até o capítulo final. Não quero ser outro alguém, não quero abrir mão do meu cargo, não quero passar o cetro, não troco de lugar nem por um decreto lei. Imagine, de jeito nenhum que eu vou deixar alguém dormir na minha cama, ao lado do meu marido, sob o meu edredon e dentro do meu pijama de ursinho. Nem pensar. Nem por todos os lençóis de algodão iraniano, nem por todos os cobertores de lã da escócia, nem por todos os pijamas de flanela inglêsa, nem por todos os maridos italianos, nem por todas os colchões da hotelaria suiça.
E depois, seria horrível acordar outra pessoa e ter que usar uma escova de dentes que não a minha.

Aceitar ser quem se é tem uma consequência imediata maravilhosa: a gente vai vivendo, vai aprendendo, vai melhorando. O progresso pessoal é uma vitória deliciosa, nos mínimos detalhes. Mesmo com a decrepitude da velhice, uma dor aqui, uma manchinha na pele ali, é inegável a beleza do conhecimento acumulado. É verdade, às vezes vem uma bela de uma senilidade precoce, uma amnésia e apaga tudo, mas tirando esses casos de exceção, é uma coisa linda começar a entender as coisas por acúmulo de aprendizado.

Sinto isso no meu tricô. Hoje, eu domino a técnica, sinto-me a rainha das agulhas compridas. Tenho mais horas-carreira com minhas agulhas do que muito piloto da aviação de carreira tem de vôo. Sei a postura, a tensão exata pra segurar o fio, como fazer com que o tecido tricotado tenha uma aparência serena e uma textura maleável. Meu arremate é preciso, nem frouxo nem apertado demais. Sei reparar qualquer erro cometido e se preciso for, desmancho tudo e recomeço o trabalho.
Agora, por exemplo. Suponho ter terminado este capítulo. Assim, vou parar de escrever, colocar a página no ar e vou fazer outra coisa. Se, mais tarde, ou em outro momento, eu reler o texto e achar que não ficou bom, posso mudar tudo, apagar tudo, posso esquecer o que dito. Posso negar, posso me arrepender ou posso redizer tudo de novo, acrescentando ainda outras coisas. Quem vai saber o que virá?





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