Minha Vida Comigo
9.24.2004
 
Capítulo 05 -O mundo lá fora (ATÉ O CAP. 8)

Você conhece a brincadeira do coelho e da cenoura? É assim: um coelho está a uma certa distância de uma cenoura, digamos, 10 metros. A cada salto, ele pula metade da distância que os separa.

Primeiro salto, 5 metros. Ele está a outros 5 metros da cenoura. Segundo salto, 2.5 metros. Agora ele já está a 2,5 metros da cenoura. Terceiro salto, mais 1.25. E assim vai. Teoricamente, o coelho jamais alcançará a cenoura. Porque a distância vai se subdividindo infinitamente. A distância entre coelho e a cenoura nunca será exatamente zero.

Isso, na teoria. Porque na prática, a cenoura não é um ponto, as distâncias são finitas e os coelhos não saltam do jeito que a gente manda só pra fazer um exercício matemático.

Na vida real, coelhos comem cenouras e físicos ficam pesquisando a vida inteira. Eu não queria passar minha vida num laboratório. Eu tinha planos para o mundo lá fora.
Era neste mundo, do lado de fora, que eu me divertia muito dando aulas de inglês. Perdi a conta de todos os alunos que tive. De vez em quando um sobrevivente manda um email pra mim. Entre as tantas turmas de students que tive, uma delas, de adultos, introduziu o mundo das comunicações pra mim. Eram duas alunas, a Vera Moura e sua amiga, cujo nome não me lembro. Pena, porque foram elas que me incentivaram a abandonar a ciência e partir pra comunicação.

Toda aula, elas insistiam em perguntar: "por que você não faz comunicação?". Elas eram contatos da então Editora Manchete e um dia me convidaram para almoçar na Casa da Manchete, hoje, mansão do empresário Jorge Yunes, famoso por emprestar dinheiro para que os amigos comprem casas na praia e dêem festas nababescas. Tudo, claro, com juros zero e sem compromisso de devolução. Foi assim com o prefeito Celso Pitta, por exemplo. Se eu soubesse eu teria pedido dinheiro emprestado para o Jorge logo no começo dos anos 80. Teria me poupado um bocado de trabalho. Bobagem, naquela época em que as coisas faziam sentido, a Casa da Manchete era da Editora Manchete pra valer.

Fiquei encantada com a casa. Era deslumbrante, um prenúncio dos quadros de pintores famosos, toalhas de linho, taças de cristal e sous-plats de prata que eu viria a conhecer na extinta TV-Manchete, da mesma família Bloch. O almoço era servido por garçons elegantes á beira da linda piscina, ao lado do jardim. Se aquele era o mundo da comunicação, ele estava de parabéns. Porque na física a vida era feita de bandejão do Crusp e bosque cheio de mato.

Não sei precisar quanto tempo depois aconteceu mas um belo dia (e tudo acontece num belo dia, não porque o dia seja inicialmente belo mas porque os grandes acontecimentos provêem o dia de beleza) eu estava na sala gelada onde eu trabalhava no IFUSP e veio o estalo: pra mim, chega.

Peguei minha bolsa, levantei, fui até o orelhão, liguei para minha ex-aluna, a Vera Moura e disse que eu iria seguir seu conselho, abandonaria a física e iria para o mundo das comunicações. Pedi a ela um conselho, uma ajuda, uma dica. Ela me passou por telefone o endereço de uma agência de propaganda. Desliguei o telefone, avisei meu orientador da minha decisão e fui para casa com meu papelzinho dobrado, pronta para mudar os rumos de minha vida.

Procurei o nome da rua no mapa, rua General Jardim, no centro de São Paulo, não muito recomendada à noite nos dias de hoje devido ao mercado persa de sexo que oferece de tudo, incluindo risco de vida.

Mas na época, em 1981, fui durante o dia e encontrei a rua, o prédio e a portaria. Não tinha idéia de que o prédio inteiro fosse da agência e fiquei olhando aquela placa com os andares e seus ocupantes, presente em várias paredes de edifícios comerciais. Eu não sabia em que andar ir mas achei que quem fica na cobertura é sempre mais poderoso. Comecei por cima. Pedi pelo nono, em homenagem a Beethoven, e fui iniciar minha sinfonia.

Eu não tinha a exata noção de onde eu estava. Não sabia o que queria. Não tinha nenhuma expectativa ou experiência. E a reunião desses detalhes parecia ser o terreno ideal para o surgimento da Fada Sorte, aquela que tudo faz por quem nada quer.

Fui direto para a secretária e perguntei pelo nome anotado no papel, Sérgio Graciotti. Não estava. Ou estava em reunião. Dava no mesmo. A secretária perguntou se era só com ele ou se poderia ser com mais alguém. Qual era a alternativa? Falar com Petroninho. Eu não sabia quem era mas também não sou do tipo de acerta o sorvete na testa. O nome da agência eu sabia, MPM, iniciais de Mafuz, Petrônio e Macedo. Ninguém é chamado de Petroninho no andar de cobertura se não for pelo menos, herdeiro do trono. Topei e fui falar com ele.

Quem era eu, afinal? Eu não era ninguém mas até que ele descobrisse isso eu já estaria contratada. Depois, se eu havia chegado até ele, eu teria que ser alguém. Assim raciocinam os poderosos. Eu deveria ser alguém importante, alguém conhecida, alguém próxima a alguém importante. Na dúvida, é sempre bom tratar bem a pessoa porque ela pode, sobretudo, ser parente de algum cliente da agência, digamos a filha do dono de uma empresa.

Eu só soube depois mas a rádio corredor havia decidido que eu era sobrinha do Sérgio Graciotti, o nome que me foi indicado pela minha ex-aluna de inglês, a Vera Moura.
A entrevista com o Petroninho foi gótica, pra dizer o mínimo. Um daqueles momentos que a gente gostaria de rever em VHS. Naquela época não havia câmeras escondidas nas salas. Era 1981, bem no começo, fevereiro, talvez. Ele começou perguntando o que eu fazia. Eu era Física nuclear. Se eu já havia trabalhado numa agência de propaganda? Não, nunca. De onde eu vinha? Do Acelerador Linear do Instituto de Física da USP. Era muito diferente da Globo e você, era nada a ver.

Exatamente porque era tudo tão obtuso que ele concluiu que eu só poderia ter sido recomendada por alguém muito importante e ele não iria me tratar mal e correr o risco de ser demitido pelo próprio pai. Era sexta-feira. Ele marcou para eu começar na segunda como estagiária. Eu disse terça. Ficou para terça feira. às 9:00 da manhã eu começaria meu estágio na então maior agência de propaganda do Brasil, e no departamento mais badalada, a Criação.

Ainda não sabia, mas eu conheceria exatamente ali, ou através daquele lugar, as pessoas com quem trabalhei a vida inteira. Uma delas, com quem trabalho hoje, precisamente.

Nessa época eu morava com uma amiga minha, a Maria Ângela Camargo, minha amiga do Instituto de Física. Éramos solteiras e nos tratávamos por 'tia' e mais tarde, 'tião'. Era 1981, John Lennon havia sido assassinado no ano anterior. Me lembro como se fosse hoje o dia que Johan Lennon morreu. Eu morava com tião num apartamento modesto próximo à USP. Meu fusca branco havia sido confiscado pela polícia e até comprar outro, eu só andava de bicicleta. Namorava com um ex-aluno de inglês, ex-editor chefe do Caderno de Esportes do Jornal da Tarde, o Edu, a quem eu chamo de Zé, hoje, editor geral do site da PSN, um destino perfeito para um corinthiano apaixonado como Zé Eduardo. Durante a madrugada ele recebeu pelo teletipo a notícia dos Estados Unidos. Correu para minha casa de madrugada com a notícia. Havia rumores de que Yoko Ono teria morrido também. Descemos para o andar térreo do prédio, antes do dia amanhecer, sem saber o que fazer, com aquela notícia atravessada na garganta, mataram John.

Yoko sobreviveu, Edu casou, sua ex-namorada Julia casou com Zé Rodrix, eu casei. Tudo isso, mais tarde, porque em 81, o grande barato antes de sair de casa para ir à MPM era ouvir o programa de rádio do Gil Gomes.

Todo santo dia eu entrava na agência atrasada, porque não conseguia parar de ouvir o Gil Gomes no rádio do carro. Não dava pra ir de bicicleta para o trabalho anyway. Na agência meu salário era zero. O que eu recebia durante 6 meses era um vale-refeição para uma espécie de boteco na vizinhança, onde eu comia, sempre, o mesmo prato: berinjela ao forno e uma água tônica. Foram 12 meses de berinjela ao forno e água tônica, sem exceções. Hoje, eu já sou praticamente uma berinjela e para mudar o formato do quadril arredondado e tronco fino, só com lipoescultura. Ao que tudo indica com a cabeça cheia de quinino advindo da água tônica mas isso, nem cirurgia resolve.

Comecei na agência como estagiária da criação, onde conheci amigos com quem me relaciono até hoje, como o Eduardo Castor Borgonovi. As feras da época eram o Castor, Diniz, Ercílio Tranjan, Feijão, João Simone, Gibinha, Sérgio Graciotti, Adriana Cury, Silvio Lima, Paulinho Leite e Cristina. Havia também o lendário imitador de rádio, Chiquinho Ferrão, o redator Palhares, e muita gente que eu nem me lembro mais, não tanto por falta de espaço na memória mas por falta de memória no tempo-espaço.

Da criação fui para o departamento de merchandising como redatora contratada. O chefe era o Paulo Penteado. Eu fazia dupla com o diretor de arte Formiga. No meu departamento trabalhava a ótima redatora Margot Soliani. Margot dividia um apartamento muito gracinha no último andar de um prédio sem elevador na Vila Madalena, hoje nacionalmente conhecida por ter virado novela da Rede Globo com Mariangela Zampol, do departamento de pesquisa da agência. Já naquela época era um lugar descolado. Fiquei encantada com o apê e quando elas se mudaram fui morar lá com tião. Até hoje guardo lembranças marcantes do tempo em que eu carregava a bicicleta pelas escadas.

Eu não sabia onde eu estava. Não sabia o que queria. Não tinha nenhuma expectativa. E a reunião desses detalhes parecia ser o terreno ideal para o surgimento da Fada Sorte, aquela que ajuda quem não pede.

Fui direto para a secretária e perguntei pelo nome anotado no papel, Sérgio Graciotti. Não estava. Ou estava em reunião. Dava no mesmo. A secretária perguntou se era só com ele ou se poderia ser com mais alguém. Qual era a alternativa? Falar com Petroninho. Eu não sabia quem era mas também não sou do tipo de acerta o sorvete na testa. O nome da agência eu sabia, MPM, iniciais de Mafuz, Petrônio e Macedo. Ninguém é chamado de Petroninho no andar de cobertura se não for pelo menos, herdeiro do trono. Topei e fui falar com ele.

Quem era eu, afinal? Eu não era ninguém mas ele não sabia disso e, se eu havia chegado até ele, eu teria que ser alguém. Alguém importante, alguém conhecida, alguém próxima a alguém importante. Na dúvida, é sempre bom tratar bem a pessoa porque ela pode, sobretudo, ser parente de algum cliente da agência, digamos a filha do dono de uma empresa atendida pela agência.

Eu só soube depois mas a rádio corredor havia fechado que eu era sobrinha do Sérgio Graciotti, o nome que me foi indicado pela minha ex-aluna de inglês, a Vera Moura.
A entrevista foi gótica, pra dizer o mínimo. Um daqueles momentos que a gente gostaria de rever em VHS. Naquela época não havia câmeras escondidas nas salas. Era 1981, bem no começo, fevereiro, talvez. Ele começou perguntando o que eu fazia. Física nuclear. Se eu já havia trabalhado numa agência de propaganda? Não, nunca. De onde eu vinha? Do Acelerador Linear do Instituto de Física da USP. Era muito diferente da Globo e você, era nada a ver.

Exatamente porque era tudo tão obtuso que ele concluir que eu só poderia ter sido recomendada por alguém muito importante e ele não iria me tratar mal e correr o risco de ser demitido pelo próprio pai. Era sexta-feira. Ele marcou para eu começar na segunda como estagiária. Eu disse terça. Ficou para terça feira. às 9:00 da manhã eu começaria meu estágio na então maior agência de propaganda do Brasil, e no departamento mais badalada, a Criação.

Ainda não sabia, mas eu conheceria exatamente ali, ou através daquele lugar, as pessoas com quem trabalhei a vida inteira. Uma delas, com quem trabalho hoje, precisamente.

A entrevista estava muito boa mas eu tinha que ir. Precisava acabar de ler o Almanaque Abril para prestar o vestibular para fazer Comunicações na ECA,a Escola de Artes Dramáticas da USP, onde eu acabaria entrando mesmo, logo depois de fechar a quarta capa do almanaque.


Capítulo 06 -Falemos de amor...


Você já escreveu, tentou, pensou, em registrar em texto qualquer coisa ligada a sua vida íntima? Amor, sexo, relacionamento? Pois se já tentou, garanto que as primeiras barreiras que surgiram foram a mãe, o pai, e a cara-metade. Não vou nem mencionar a dificuldade de escrever sobre nossos vícios e atitudes ilícitas, que batem direto no medo da polícia.
E o medo de registrar em texto faz sentido, porque mesmo vivendo neste país classificadamente corrupto, o jogo do bicho nos ensinou que na vida, só vale o escrito.

Existe um código de ética invisível e sublimado entre as pessoas que mantêm uma relação, que é a de não ficar falando de amores anteriores. Bilhões de retratos já foram picados, amassados e recortados, na tentativa vã de arrancar do passado do objeto do nosso amor, as criaturas que vieram antes da gente.
Bobagem. Não dá pra mudar o passado. Ao contrário, quando a gente tem um relacionamento estável, feliz, com intenção de ser para sempre, podemos colecionar os amores passados, e guardar nos armários da memória, todas as lembranças numa gaveta da cômoda, inclusive, as incômodas (...)
Aproveitando os parênteses abertos para introduzir a pergunta: onde estará o passado?

Há filmes de ficção que mostram o passado existindo fisicamente em algum lugar atingível por uma máquina do tempo. De volta pra o futuro, Peggy Sue Seu passado a espera, o túnel do tempo, são obras de ficção onde o passado parece 'existir' e pode até mesmo ser atingido. E mudado... Outros filmes como Matrix, mais moderno, troca a possibilidade de viajar ao passado pela visão de que tudo são programas. Esqueci o nome do filme que vi outro dia, mas o mundo terminava num monte de linhas de um programa inacabado de computador. Era possível fazer um upload e depois um download e ir e voltar para o próprio passado. A gente virava um 'usuário' da própria história. (O Cláudio me escreveu: chama-se 13o. andar. )

Não sei exatamente o que pensar, mas espero que ninguém possa invadir o passado alheio e roubar de nós os poucos segredos tolos que insistimos em guardar na cabeça enquanto dispomos de lucidez. Um dia vem a senilidade e apaga tudo mesmo.
Sempre fui um ser em estado de amor. Acredito que as raízes das grandes árvores arrancam a vida da terra, as folhas absorvem a energia do sol, e quando as árvores não cabem mais em si de tanta vida, explodem em flores multicoloridas que ganham asas e viram passarinhos. As que ficam morrem como flores e renascem em frutos, que lançam sementes de volta à terra para tentar uma nova busca por asas. Digo tudo isso porque também amo as letras, a natureza e a poesia.

Eu sempre amei os homens bons. Todos os homens bons. Comecei à la Electra, por meu pai, mas descobri que ele tinha um caso com minha mãe e desisti de cara. E apesar de praticar o heterosexualismo, nunca deixei de amar algumas mulheres admiráveis.
Meu primeiro amor pelo sexo oposto aconteceu no primeiro ano da escola. Poderia ter sido antes, mas eu perdi muitos anos da minha primeira infância dando uma de difícil. Na próxima 'encadernação' vou parar com essa viadagem e beijar o obstetra na boca assim que cortarem o cordão, para não transformar mamãe em cúmplice.
Ele era um alemãozinho loiro, de olhos verdes, muito tímido e não me restava nada a fazer senão correr atrás dele o tempo todo. A ele agradeço até hoje minhas pernas bem torneadas. Não deu em nada, provavelmente porque tínhamos 7 anos de idade. Mas o autor do outro livro, o da vida, incumbiu-se de nos resgatar como personagens e acabei namorando com ele aos 17. Nunca passamos dos beijos na boca e jamais chegamos perto da divisão reprodutiva. Ele, porque só acreditava em sexo depois do casamento. Eu, porque não acreditava em sexo na cama de cima do beliche.

Entre os 7 e os 10 fui apaixonada por cantores, atores, filhos de vizinhas. Tive um diário para escrever sobre meus amores que virou um marco negro na história de confiança entre eu e as mulheres da família. Minha prima mais velha, descobriu que eu estava apaixonada, contou para minha mãe, que violou meu diário e descobriu meus segredos. Por causa disso, minha mãe me mantinha numa escola só para mulheres. Que tolinha, mamãe. Não sabia que os meninos transitavam soltos pelo mundo e eu, obviamente, arrumei um namorado no ônibus. Ía e voltava da clausura feminina de mãos dadas com meu namoradinho. Sempre recorrente, o destino fez com que ele batesse à minha porta no dia em que fiz 18 anos, alto, feio e incomodamente bêbado para confessar-se ainda apaixonado e causar um constrangimento indescritível. Quem mandou meus pais morarem no mesmo endereço por trinta anos.

No então 1o ano do ginásio, hoje 5a. série do primeiro grau, Deus me compensou com um presente inesquecível: depois de muito brigar com meus pais para me tirarem da escola de mulheres onde eu só tirava dez e alegava ser por causa do ensino fraco, fui transferida para outra escola. Ocorre que, a escola até então, era exclusivamente para meninos. Seria o primeiro ano em que meninas seriam admitidas também. Seriam, se suas mães assim o fizessem. Mas aparentemente só a minha mãe foi bem convencida e, durante um ano, eu fui a única menina numa sala de 49 alunos. Todos, homens.

Evidentemente eu era virgem, era uma menina mas tudo conspirava a favor do sexo: era o ano de 1969.
Ah! O paraíso é a falta de concorrência! Dumping no mercado da paixão! Monopólio feminino total no mercado do amor! Certo? Errado.
Eram todos homens. Mas tinham a minha idade: 11 anos. Eu queria...homens..mais velhos. E assim, me apaixoneu por um dos gêmeos espanhóis de 17 anos, Carlos e Juan Luiz Maqueda Maqueda. Assim, mesmo, Maqueda por parte de pai e Maqueda por parte de mãe. Eu gostava do Juan Luiz, que me desprezava solenemente por eu ser criança demais.

Foi ele quem primeiro gritou pelo pátio do colégio anunciando aos 4 ventos que eu tinha ficado menstruada pela primeira vez. Se existisse OB nos anos 60 eu o teria enforcado com o cordãozinho. Mas apenas chorei muito no travesseiro e passei a acreditar que sexo, homens, sangue e lágrimas eram coisas difíceis de combinar.
Namorei muito, muito mesmo. Pra ser sincera, não me lembro de um único dia entre meus 7 e meus hoje 26 anos em que eu não estive envolvida com alguém. Ao contrário, durante a vida de solteira já cometi a burrice de ter dois, três namorados ao mesmo tempo, mistura da indecisão com a insegurança, tudo regado a calda de auto-afirmação. E uma cereja de vaidade em cima.

Aos 26, casei-me pela primeira vez. Hoje estou casada, pela última vez e confesso ter encontrado o homem da minha vida. Construímos uma família e somos muito, muito felizes.

E se os amores do passado voltam à esta tela é porque a internet permite que cada um de nós busque e encontre seu ex-parceiros no filme coletivo "Meu passado me condena", onde todos somos ora coadjuvantes, ora atores principais, ora figurantes. Hoje, tenho contato por email, Icq ou IM da Aol, com o primeiro garoto que se apaixonou perdidamente por mim, com minha primeira paixão fulminante, e o primeiro namorado com quem fiz sexo.
E atire o primeiro monitor de 14 polegadas quem nunca procurou um amor antigo nos mecanismos de busca desta louca rede de intrigas.



Capítulo 07 -Eu sou fogo!

A idéia deste capítulo veio com um email, enviado pela Fernanda, cujo nickname é Sally CinnamOn. Fiquei em dúvida se o CinnamOn é com a letra 'O' ou se é um número zero (0). Experimente a diferença no seu teclado:
OOOO e 00000000

A letra é mais gordinha que o número, mas é difícil de saber sem comparar. Em 1975, quando rodei meu primeiro programa de computador na Escola Politécnica da USP, no primeiro ano do curso de Física, troquei um Zero por uma letra 'O' na perfuradora IBM e fiquei um tempão tentando descobrir meu erro. Aprendi. Suspeito de qualquer bolinha do teclado desde então.

Esse exemplo fortuito cai como uma luva para o texto. Aliás, cai como qualquer coisa sujeita à gravidade... Eu sou fogo mesmo. Leonina, solar.
Sou tão leonina e tão solar que como todo mundo que tem o elemento fogo, mesmo não sendo no rabo, adoro dizer que sou fogo. Dá uma sensação de poder, uma coisa bem de gente meio metida a besta como eu. Só meio, porque a outra metade é muito bacana.
Por ter o sol como regente, inventei uma frase para explicar minha natureza. Digo que sou um sol. De longo, ilumino; de perto, aqueço. Mas se encostar, eu queimo mesmo.

Sou exatamente assim. Num ambiente, eu jogo luz. Gosto de festas, de animar as pessoas, de contar piadas e casos. Nos momentos sombrios, tristes, nas situações de escuridão, estarei sempre com uma lanterna, uma vela, um sorriso meio amarelo porém iluminado.

Nas relações mais próximas, aqueço. Sou afetiva, abraço, beijo, dou conforto. Sou aquela amiga em quem você pode confiar, com quem você pode contar. Mas tem que ser alguém que eu considere próxima. É uma coisa do destino, da empatia, não tem inscrições abertas para distribuir carteirinha. E isso não tem nada a ver com o fato de ter trabalhado na televisão. É coisa minha. Se eu fosse da Máfia diria que é cosa nostra.

Agora, tem um porém. Detesto ser invadida. Detesto que me façam perguntas, que me abordem, que invadam minha privacidade. Que me interroguem, me ponham contra a parede. E não suporto que falem comigo pegando em mim. Um dia eu fui à uma reunião de trabalho, na sede do empreendimento Xuxa Water Park, que acabou não sendo lançado por problemas com algum órgão defensor da áreas verdes. Não sei se foi o Ibama ou o que. Ao meu lado, na reunião, lotada de gente, havia um homem que me cutucava no ombro direito. Aquilo foi acordando meus demônios, que moram nos meus ombros. Eu fui ficando com um ódio, uma ira incontroláveis. Na nonagésima terceira vez que ele me cutucou, já no hematoma fixado pelas 89 vezes anteriores, explodi.
Levantei da cadeira, que caiu com o peso da bolsa apoiada no espaldar e gritei algo assim:

- Escuta aqui: eu estou agüentando você me cutucar com esse dedo desde o começo da reunião! O que é que você tá pensando? Pra mim, um palmo em volta da minha pela já é meu espaço aéreo! Portanto, não encoste em mim!!!!

Foi aquele clima geral. Mas a reunião continuou, nem sei como.Esse é meu jeito de queimar as pessoas que me invadem. O exemplo foi físico, mas serve também para o plano espiritual, metafísico, psíquico ou mental.

De vez em quando também sou vítima do meu próprio elemento, o fogo. A desvantagem é que mesmo brigando comigo não tenho como me distanciar de mim. Isso deve ser o karma, aquilo que a gente tem que agüentar e pronto.
Por estranho que pareça, não estou com muita vontade de falar de mim. Não é que eu não goste de falar sobre mim é que não existe um 'mim' constante sobre o qual falar.
Sinto-me como as chamas do fogo, aquelas labaredas que lambem a madeira seca. O fogo é bonito de se olhar, porque a gente não consegue compreender sua textura. E não adianta compreender a explicação lógica do fogo, da combustão do oxigênio. Tudo isso são só informações palavras, não muda o contato visual com aquele fogo seco, dançante, bruxuleante.

Adoro essa palavra, bruxuleante. Ela sempre vem junto com as labaredas, assim como o óbvio e o ululante.

Sei que estou divagando, mas como sempre digo, meu leva é :Divagar. E sempre.
Isto aqui está uma confusão dos diabos, provavelmente, porque quando o assunto é fogo, o demônio sempre aparece. Eu já devia ter imaginado. Acordamos os bichinhos. Vamos a eles então.

Eu já tive o diabo no corpo, de alguma forma. Foi por pouco tempo, mas fui possuída por alguma coisa sem nome, pelo menos, no meu vocabulário.
Nessa época eu morava com minha amiga Julita. Até hoje refiro-me a ela como minha melhor amiga. Ela é a mais especial. É uma pessoa única. Inteligente, sensata, sensível, sábia. Nunca conheci uma mulher que dirigisse tão bem. Nem homem. É a melhor motorista que eu conheço, embora esse não seja o motivo que me faça gostar dela. Gosto dela por tudo que ela é. E vou continuar gostando mesmo que ela decida mudar esse tudo.

Fizemos faculdade juntas no Instituto de Física. Fomos morar juntas. Saímos da casa dos nossos pais para declararmos independência. Nos finais de semana, visitávamos nossas mães em busca de panelas, frigideiras, louça, toalhas e todo o enxoval que as coitadinhas ainda não tinham tido o prazer de nos dar, já que éramos ambas solteiras. Julita chamava essa prática numa alusão divertida ao assalto á mão armada. de "Assalto à mãe amada".

Foi na nossa casa, na Vila Gomes, um bairro pobre perto da USP, nos baixos-fundos de um sobradinho onde moravam o Halter, do ex-grupo de música latino-americana Tarancón e sua gentil esposa, Vera, que muito me ajudou, que vivemos uma experiência muito intensa ligada a algo que eu chamaria de...sobrenatural. Porque natural, não foi mesmo.

Morávamos abaixo do nível da rua e o acesso à porta da micro-casa dava-se por uma longa escada descendente. Eu ainda dava aulas de inglês nessa época e chegava tarde em casa. Julita chegava mais tarde ainda.

Estacionei meu fusca 69, velho mas com uma inspiração sexual interessante, em frente ao portãozinho e senti que havia algo estranho. Todo mundo já sentiu um desses algos, tão anônimos quanto inexplicáveis.

Achei que a sensação passaria logo e fui descendo os degraus. Mas não. Quando mais eu descia, mais eu sentia. Sozinha e à noite, é fácil deixar-se impressionar por uma experiência dessa mesmo para pessoas com inclinações ao ceticismo, como eu. Mas não havia o que questionar ou contra-argumentar. Eu não estava pensando eu estava...sentindo.

Abri a porta com uma sensação muito estranha, e tirando coragem não sei de onde para entrar em casa.

Entrei. E senti que a casa estava viva. As paredes respiravam. Não sei dizer se eu ouvia a respiração mas como se.
Fiquei impressionada e não sabia o que fazer. Não tínhamos telefone e naquela época o celular estava longe de ser inventado. Fui até a cozinha mas a coisa parecia piorar ao longo do corredor.
Voltei para a sala, sentei-me no sofá e fiquei esperando a Julita chegar. Pouco tempo depois, ouvi carro dela chegando. Esperei quieta. Assim que ela entrou, perguntei:

- Juju, você tá sentindo?
- Estou.
- Eu tô com medo.
- Não precisa.

A casa estava tomada, definitivamente, por não sei o quê. Ela sugeriu que fossemos ao quarto que dividíamos para dormir. Cada uma sentou em sua cama e comecei a ficar muito, muito nervosa.

Ela pediu que eu me acalmasse e que me deitasse. Obedeci e fechei os olhos.
Julita começou a falar num tom calmo como lhe é peculiar, não em tom de prece mas de conselho, de conversa. Lentamente ela foi dizendo que aquele não era seu lugar, que ele fosse embora. Fosse quem fosse, ele ou ela, a respiração crescia e crescia e crescia. Eu não conseguia abrir os olhos, ou falar, ou fazer qualquer coisa que não tremer.

Comecei a sentir um calor intenso, na cabeça do rosto, que descia pelo meu corpo, ardendo ,queimando.
Julita foi aumentando o tom e a intensidade de suas ordens para aquela entidade, nitidamente envolvida e impressionada. De repente, o calor desceu rapidamente para meus pés num crescendo e...acabou.
Acabou tudo. A casa voltou ao normal.

Abri os olhos, sentei-me na beira da cama, abracei Julita que me consolou e depois de me acalmar ela me disse com muito carinho:
- Biscoito, saiu uma chama muito grande de fogo dos seus pés. Uma labareda de luz que foi descendo pelo seu corpo e finalmente, foi embora. Não foi nada. Tá tudo bem.
Nunca contei isso a ninguém, nem comentei mais com Julita. Não fui possuída, mas acho que quando o não-sei-o-que ficou acuado, tentou se esconder em mim. Felizmente eu não nasci pra esconderijo de almas penadas e com o apoio da minha advogada espiritual, livrei-me desse sei-lá-o-quê.

Minha afinidade com Maria Julita Guerra Ferreira sempre foi muito além do natural. Durante uma aula de inglês, tive uma visão súbita de que ela precisava urgentemente de mim, parei a aula, pedi desculpas, peguei a bolsa e sai correndo da escola para encontrar-me com ela. Fui para casa sabendo que ela me esperava na sala, entrei e encontrei-a chorando no sofá. Uma prostituta que fazia ponto em frente ao Jóquei Clube, ouviu a sirene de uma ambulância e pensou que fosse a polícia. Com medo, correu loucamente e atravessou a rua e jogou-se em frente ao carro de Julita. Julita bateu com o carro na moça e atropelou-a. A mesma ambulância que assustou a prostituta, viu a cena pelo retrovisor, voltou e levou-a para o hospital.
A moça não sofreu nada de grave, mas já no hospital começou a ameaçar Julita, na tentativa de estorquir dinheiro, como se ela tivesse sido culpada.
Ao longo da nossa amizade e convivência, muitas vezes tivemos essas comunicações mentais. Tenho-as também com meu marido, com alguns amigos.
Muitas vezes, prevejo coisas próximas, descrevo coisas que minutos depois alguém vai ver numa revista. Não é nada de mais, mas é muito freqüente.
Os livros já falaram comigo, já caíram da estante na minha mão, abertos na página certa para responder a uma pergunta que estava na minha cabeça, já vi coisas do passado alheio.

Muitas dessas experiências aconteceram durante um período muito forte da minha vida, oscilando entre a dor e a felicidade, do começo a meados dos anos 80. Especialmente em Campos de Jordão, onde tive uma casinha e praticamente morei durante mais de um ano. Coisas mágicas aconteceram lá, onde não tive um filho, mas escrevi muito e plantei bem mais de duas mil árvores.


Capítulo 08 -Hoje é um dia inesquecível.


Tenho o péssimo hábito de não colocar a data em nada. Mas esta data eu quero registrar, 26 de outubro de 2000, porque vou usar este texto para perpetuar um momento que ficará impresso em mim por toda a vida, mas que de tão vivo, encheu algumas centenas de pessoas de sementes de humanidade, prontas para serem semeadas a partir de agora.
Quando eu entrei na Rede Mulher, no final de 1995, conheci Dulce Ramos. Eu era diretora artística da emissora que, na época, pertencia à família Montoro, cuja sede era em Araraquara, e Dulce foi mostrar o seu trabalho para mim. Eram cartões tridimensionais, lindos e delicados, extremamente bem feitos, montados por presos do Carandirú. O projeto chamava-se "Um sonho de liberdade" e a cada três dias trabalhados, um dia de pena era abatido.
Fiquei encantada com Dulce, com a qualidade do trabalho, com sua coragem e com a beleza do projeto. Pautei-a para apresentar seu trabalho no então carro-chefe da emissora, que eu criei e batizei de "Universo Feminino" e convidei Dulce para o programa Via Satélite, que eu apresentava à noite.
As pessoas foram ficando cada vez mais interessadas no trabalho da Ramblas, principalmente porque dava uma nova dimensão para que olhássemos os presos de uma forma nova, especialmente quando as pessoas descobriam que os 'monstros' que vemos na TV correspondem a uma minoria, talvez 5%, de um contingente de dezenas de milhares de presidiários. Entre eles, homens que cometeram pequenos delitos, que nunca mataram ou torturaram, que não seviciaram ou estupraram, nem seqüestraram ninguém. Alguns, inclusive, devido a nosso eficientíssimo e incorruptível sistema judiciário, são presos por engano, são inocentes úteis. Mas o preconceito e o descaso da sociedade, muitas vezes incumbem-se de oferecer condições tão sub humanas nos cárceres, que acaba por garantir que até um inocente se transforme num futuro criminoso.
Fizemos uma reportagem no presídio do Carandirú e aprendemos muita coisa, como por exemplo, que não se pode entrar no presídio de calça bege, pois esta é a cor dos uniformes dos presos. A equipe e a produtora, Raquel Zimmerman, voltaram energizados com a experiência de gravar o trabalho dos presos de Dulce para a Ramblas.
No Dia Internacional da mulher, 8 de março, decidi que os cartões da Rede Mulher, seriam feitos por Dulce. Escrevi um texto especial , que até hoje está no ar na Internet, graças à gentileza de Dulce. O cartão continha uma flor em três dimensões e o texto do cartão dizia:
"Aceite esta flor, montada por detentos, como símbolo da liberdade, do amor e da compreensão, talvez os maiores dons de uma verdadeira mulher”.
Homenagem da Rede Mulher de Televisão às mulheres de todo o mundo”
Desde então, encampei a causa da Dulce. Até meu marido chegou a visitar o presídio como psiquiatra para oferecer trabalho voluntário.
Passou-se o tempo, fui para a Record,saí, continuei na Rede Mulher e durante o tempo em que fiz o Via Satélite, entrevistei Dulce duas outras vezes. Descobri que sua filha também estava trabalhando com os presos, montando bibliotecas. O encanto aumentou ainda mais. Em junho saí da Rede Mulher.
Mas como Deus sabe o que faz, quando isso aconteceu, em julho, eu já estava trabalhando na NewCommBates, a agência onde trabalho, a convite de Walter Longo e Roberto Justus, ambos ex-patrões ao longo da minha carreira como redatora e criadora.
Assim que entrei na NewComm, surgiu uma concorrência para ganhar uma conta muito importante, que aliás, ganhamos, mas não posso declarar ainda por um problema ético. O anúncio será feito na segunda-feira, quando o cliente terá avisado as outras agências que não foram selecionadas. Precisávamos de um convite para o projeto e eu logo lembrei de chamar a Dulce da Ramblas. Como leonina, meu adjetivo principal é 'fiel'. Sou fiel até a morte com as pessoas que amo e respeito.
Dulce então, voltou à minha vida. Apresentei-a a todos e meus colegas ficaram igualmente entusiasmado com seu trabalho, pela qualidade e pelo significado.
Logo em seguida, Dulce me contou que havia a possibilidade de concorrer ao prêmio Cláudia deste ano e ela perguntou se eu a recomendaria, se enviaria o meu aval, já que o prêmio é nacional, muito sério e exige que as pessoas apresentem recomendações.
Caprichei no texto e na verdade, para falar de Dulce ao representante da Abril. Admiro muito a revista Cláudia, já entrevistei várias vezes a maravilhosa Célia Pardi, a grande responsável pela revista.
Comecei então a minha torcida por ela. Mandei o email com a recomendação. E soube que ela foi aceita. Vibramos. Continuamos nos falando.
Pouco tempo depois, recebi um convite que reconheci como sendo exclusivo da Ramblas, patenteado. Era o convite de lançamento da Revista Uma, da Editora Símbolo. Fiquei indignada, pois o convite não dizia nada sobre a Ramblas ou a montagem por presidiários. Liguei para Dulce e soube que alguém havia feito a um orçamento com Dulce, roubou a idéia, e mandou outra gráfica executar o projeto, cuja patente é da Ramblas. Enviei os convites como prova e Dulce vai tomar as providências contra a revista. Tem gente que é assim, que não se importa nem de roubar dias de liberdade de presos que trabalham.
Pouco tempo depois, Dulce me ligou dizendo que havia sido selecionada. Recebi o convite para o dia do prêmio e jurei que eu iria. Dulce passou um fax com o discurso que faria, caso ficasse entre as finalistas. Li, gostei, aprovei. E ficamos na espera.
Esta semana, chegando a data da grande noite, vi uma foto de Dulce no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo e tive um bom pressentimento.
Chegou o dia do prêmio. Eu estava muito nervosa, porque eu tinha uma reunião na agência que terminaria às 7:00 horas, e eu teria pouco tempo para chegar em casa, tomar banho, me trocar, me arrumar, e ir até o teatro Alfa, que eu não conhecia.
Começou então a dar tudo errado. A reunião acabou depois das 8. Eu não podia sair da sala. Quando terminou, saí voando. Chovia. O trânsito estava um inferno. Cheguei em casa às 8:40. O coquetel começava às 8 e o prêmio, às 9. Em 10 minutos eu estava pronta, sabe-se Deus como. Resolvi pegar um táxi e fui correndo de salto alto até o ponto. Meu marido só sairia do consultório depois da 9 e combinou que não poderia me levar. No ponto de táxi, tive uma crise. Nenhum dos motoristas sabia onde era o teatro. Tive uma crise. Voltei pra casa e decidi esperar meu marido chegar porque eu estava muito nervosa e não queria nem dirigir e nem ir sozinha. E jurei que não iria faltar na noite mais importante da minha amiga.
Isaac chegou, eu já havia separado a roupa para ele vestir e saímos. Chegamos ao teatro Alfa às 9:50. Entramos sorrateiramente e sentamos na penúltima fila do teatro, uma coisa linda.
Os apresentadores, Glória Maria e Rondino, ao vivo, anunciavam que mostrariam o vídeo com as 15 mulheres concorrentes. Eu não imaginava a emoção que seria ver o trabalho dessas mulheres.
Comecei a chorar desde o começo, porque a gente não imagina quanta gente boa tem nesse país, fazendo trabalhos humanos.
Quando vi o vídeo da Dulce, senti um grande orgulho e comecei torcer os dedos para dar boa sorte.
Após as 15 selecionadas, seriam apresentadas as 5 finalistas. Começou com Nazaré Imbiriba, uma mulher que cuida de 110 comunidades pobres do Pará ao Amapá, no projeto Poema, Pobreza e Meio ambiente do Pará. Uma mulher baixinha mas muito forte, que diz que não dá pra ter discurso ecológico onde há fome.
Aplaudida, foi ao palco e agradeceu.
A segunda selecionada foi Candelária, apelido de uma ex-menina de rua, ex-prostituta, que hoje apóia as prostitutas de Aracajú no Sergipe, distribuindo camisinhas, ensinando as mulheres a prevenirem doenças. Sua simplicidade e sua emoção fizeram todo mundo chorar. Quando subiu ao palco, e recebeu o prêmio das mãos de Marília Pêra, ela tremia. Não se pode imaginar o que é ser uma ex-prostituta em Aracajú, numa noite de gala, sendo homenageada em São Paulo, por uma platéia seleta que a aplaudia de pé.
Veio então a minha primeira grande emoção. Quando o vídeo mostrou as grades, eu sabia. Era Dulce. Chorei, aplaudi, gritei seu nome. Ela então subiu ao palco, leu o discurso que me passou antes por fax. No texto ela relembrou o massacre do Carandirú, quando 111 homens foram executados covardemente. Entre eles 40 funcionários de Dulce. Foi um discurso muito profundo e para completar, uma surpresa. Na lista de agradecimentos, falou meu nome. Foi um prêmio para mim. Meu coração foi tomado de uma alegria por ela que me fez correr pelo corredor para abraçá-la, assim que ela desceu do palco para seu lugar.
Veio então Lisaura Ruas, uma senhora maravilhosa, que há 30 anos trabalha em Niterói reabilitando de deficientes. No meio do vídeo o depoimento de um rapaz, vítima da Talidomida, com aqueles bracinhos curtos, ao lado de uma piscina, dizendo que era uma pessoa de sorte, por ter encontrado aquela entidade que o ajudou a ser a pessoa que é. O imenso auditório era uma só comoção. E quando Lisaura Ruas subiu ao palco, André foi chamado. Com seus pequenos braços atrofiados, ele, que é campeão de natação, segurou e entregou o prêmio a Lisaura. Foi lindo.
Como foi lindo ver 7 mulheres, cientistas, bolsistas da Fapesp, que decifraram o código completo da Bactéria Xyllela Fastidiosa, que ataca os laranjais. Sete mulheres cientistas, brasileiras, do projeto Genoma, que colocaram o Brasil no primeiro mundo.
A orquestra ao vivo então, tocou uma música de Caetano, para que preparássemos o espírito para a grande finalista da noite.
Meu marido já estava querendo ir embora, porque à meia noite de quinta para sexta seria seu aniversário.
Mas eu precisava esperar. Roberto Civita então, subiu ao palco para falar deste prêmio e de sua visível comoção em relação às mulheres que fazem esse trabalho invisível e maravilhoso. Civita chamou Célia Pardi para chamar a grande finalista da noite, para receber o Prêmio Cláudia 2000, o último do nosso milênio.
E Célia Pardi anunciou que a vencedora era...Dulce Ramos!
Não sei se eram 2, 3 mil pessoas, em pé aplaudindo Dulce, como eu, chorando, emocionadas.
Dulce subiu ao palco e mal podia falar. Mas dedicou a todos os que tem coragem de ver que somos todos humanos. E chamou ao palco, um ex-presidiário, que cumpriu 5 anos de pena, e que há 10 anos é soropositivo de HIV e trabalhar com Dulce desde o começo de seu projeto.
Vendo aquele homem, humano, chorando, soube que vamos ganhar. Senti que todos esses homens podres, como Maluf, como Cacciolas, como Lalaus, todos esse ambiciosos corruptos, como Viscomes, como Vitas e Pittas, que só pensam em si, no dinheiro, no poder, que roubam para produzir miséria, como todos os mentirosos que vendem a alma para aliciar a ignorância, que acham que prostitutas não são seres humanos, que presos não são seres humanos, que homossexuais não não seres humanos, não são para sempre.
Reuni coragem para acreditar que é só uma questão de tempo. E que vamos sim, criar um mundo mais justo, especialmente com as mulheres tomando as rédeas de muitas atividades ligadas ao poder.
Senti orgulho de ser mulher, de abraçar aquela ex-prostituta de Sergipe e chorar com ela, de abraçar Dulce no saguão, no meio de todas as luzes das câmeras, de abraçar sua filha, seus funcionários.
Saí de lá com os olhos borrados e alma renovada. Fiquei orgulhosa de mim, por não ter desistido de ir, por ter sido fiel à uma amiga tão boa, por ter insistido em levar meu marido comigo, que também voltou com o coração elevado.
Hoje, eu vou dormir com a alma plena e vou pedir a Deus, que ilumine a todos os seres deste planeta, para que voltem a sentir a presença divina em seus espíritos, para que um vento lhes devolva a capacidade da compaixão e para que uma vez iluminados, olhem ao redor e vejam que somos todos, seres humanos.
Igualdade, fraternidade, liberdade. Esses são os ideais da revolução francesa. Esses devem ser os ideais de todos nós, brasileiros. Esses devem ser os lemas de uma revolução sem armas, mas com muita coragem e humanismo, uma revolução que vai derrubar para sempre os podres poderes dos homens vis.
E pelo que senti, essa revolução já começou. Com mulheres de fibra, como as que vi esta noite. Mulheres capazes de amar.



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